TRANSPLANTAÇÃO DAS RELIGIÕES COMO MODELO TEÓRICO DE PESQUISA SOBRE
MIGRAÇÃO: O CASO DO DAOISMO NO BRASIL
Matheus Oliva da Costa
Introdução
A história das religiões pode ser estudada de diferentes maneiras,
sob as mais diversas perspectivas teóricas. Dentro do campo geral das Ciências
Humanas e Sociais, que observam as religiões enquanto produções humanas frutos
de seus contextos, existe a teoria da transplantação das religiões (TTR),
modelo que proporciona ferramentas para o estudo de processos migratórios de
religiões. Trata-se de uma perspectiva própria da Ciência das Religiões
(Religionswissenschaft) para o estudo do processo migratório das religiões.
No presente texto vamos apresentar sinteticamente essa teoria e
exemplificar com o caso do Daoismo no Brasil, pesquisa fruto do nosso mestrado
na área de Ciência das Religiões (Costa, 2015). O objetivo é investigar a
utilidade do modelo da TTR, levantando o questionamento de quais são seus
alcances e seus limites heurísticos. O método usado consiste em revisão
bibliográfica, análise teórica através da TTR, somado aos dados observados em
pesquisa de campo e documental durante o mestrado entre 2013 e 2015.
Teoria da Transplantação
das Religiões
A Ciência das Religiões é organizada basicamente em dois ramos
teóricos, desde a tese de 1924 do cientista das religiões Joachim Wach (2018;
Costa, 2019): o empírico e o sistemático. O ramo empírico, também conhecido
como “história das religiões”, engloba as pesquisas específicas que se
preocupam com a descrição de dados de determinada tradição cultural religiosa,
estudados via pesquisa de campo ou documental. O ramo sistemático é
caracterizado por pesquisas que buscam organizar, classificar, comparar ou
teorizar sobre religiões a partir dos dados empíricos. Ambos os ramos se nutrem, sendo complementares e
interdependentes.
A teoria da transplantação das religiões (TTR) nasceu da demanda
do ramo empírico de estudar a dinâmica das religiões, mais especificamente para
pesquisar as religiões em fluxo migratório. Para isso, foi proposto um modelo
teórico e metodológico de realizar investigações sobre as migrações religiosas,
utilizando dos conhecimentos classificatórios e dos conceitos dos estudos
científicos sobre religiões. Dentro desse contexto científico, a TTR foi
desenvolvida pelo cientista das religiões Michael Pye (1969).
Ao debater com outros autores clássicos da Ciência da Religião,
como Van der Leeuw e Pettazzoni, Pye (1969) afirma que escolheu o termo
“transplantação” visando incluir aspectos conscientes e inconscientes. Buscou
abranger noções de missão, propagação, transmissão e suas consequências, como o
sincretismo, a ambiguidade cultural, reavivamentos e reformas. Pye (1969, p.
236) avisa aos leitores incomodados com a nomenclatura escolhida: mesmo que
transplantação nos remeta a um jardineiro consciente de que trabalha em seu
jardim, deve-se incluir em nossa mente a imagem de sementes transplantadas pelo
vento ou involuntariamente por insetos.
A seguir, vamos expor brevemente a contribuição que consideramos
mais relevante de cada autor encontrado em nossa revisão bibliográfica
específica sobre a TTR. Depois resumiremos os pontos principais da TTR. Para
uma visão mais detalhada e completa da TTR, indicamos a leitura do capítulo
teórico da nossa dissertação de mestrado e dos autores discutidos (Costa,
2015).
Michael Pye (1969), além de criar formalmente a TTR, propõe cinco
conjuntos de diferenciação e três movimentos culturais. Os conjuntos de
diferenciação seriam fatores a serem investigados no processo de migração das
religiões, que destacamos o fato de existirem fatores religiosos ou não e de
não são necessariamente sequenciais. Os três movimentos culturais são: (i)
contatos culturais, (ii) ambiguidade e (iii) recuperação. Sua maior
contribuição é mostrar que em todo processo de migração religiosa ocorre uma
dialética entre (re)ações de ambiguidade e de recuperação (ou inovações e
conservadorismos), tanto por parte das religiões como por parte da cultura de
recepção.
Anos depois o cientista das religiões Martin Baumann (1994)
aumentou os “movimentos culturais” de Pye, chamando-os de modos processuais:
(i) contato, (ii) confrontação e conflito, (iii) ambiguidade e adaptação, (iv)
recuperação ou reorientação, (v) desenvolvimento independente e inovador. Ele
também propôs que observássemos sete possíveis estratégias de adaptação que as
religiões utilizariam: tradução, redução, reinterpretação, tolerância, assimilação,
absorção e aculturação. Uma importante dica dada por este autor que é tradições
mais flexíveis irão incentivar ambiguidades para serem aceitas nos novos
ambientes em que são recebidas.
Michel Clasquin (1999) chama atenção para os processos mais
conscientes de migração, como as ações “missionárias”. Afirma que há níveis de
aprofundamento ou sucesso do missionário: contato inicial, penetração cultural
e dominância. A “penetração cultural” depende de como os modos processuais da
transplantação vão acumulando informações e experiências, e como isso é usado
pelos divulgadores internos ou externos às religiões. Assim, é essencial
entender como e em que sentido é vista a questão da divulgação das ideias e
práticas pela própria tradição em seu período inicial e ao longo de seu
desenvolvimento.
Ellen Goldberg (1999) levantou a relevância da questão do
“orientalismo” denunciado por E. Said (1990) para a TTR, se tratando de
tradições asiáticas. Para ela é necessário atentar para a
representação/imaginário social da religião transplantada pela cultura de
recebimento antes da chegada física desta mesma religião, principalmente nas
fontes escritas. Por outro lado, é importante perceber como a nova religião
asiática utiliza da sua representação (é orientalista?), de elementos da
religião dominante do novo ambiente e de recursos leigos/seculares da sua época
para ser mais bem recebida e ter adeptos.
Ronan Pereira (2001), o único historiador dentre todos estes
cientistas das religiões, tal como a autora anterior alerta para o valor dos
momentos históricos anteriores da religião recém-chegada. Ou seja, a situação
em que a religião estava em seu ambiente “original” antes de migrar pode
enviesar suas atitudes no novo ambiente. Da mesma forma, fatores externos podem
incentivar ou gerar obstáculos, sendo que três deles se destacam: avanço
tecnológico, o impacto da espiritualidade Nova Era e o contexto sociopolítico
de recepção.
O brasileiro Rafael Shoji (2004) propõe outra perspectiva sobre a
dialética original entre ambiguidade e recuperação, já que vê uma dialética
entre uma “harmonização local” e uma “legitimação estrangeira” no processo de
transplantação. Significa que a ambiguidade busca, mais exatamente, a
harmonização com a cultural local de recepção, enquanto a recuperação tende a
supervalorizar as raízes estrangeiras das tradições, buscando legitimação.
Pensando nas estratégias de adaptação que as pessoas da religião migrante usam,
acrescenta as possíveis posturas de: nativização, instrumentalização,
relativização e sobrevivência.
Outra autora que repensou a dialética própria da TTR foi Pauline
Kollontai (2007). Ela observa um continuo processo de construção, desconstrução
e reconstrução de crenças, práticas e identidades religiosas. De maneira
sistemática, Kollontai (2007) aponta cinco fatores principais que ajudam a
identificar novas formas de mudanças cultural-religiosas: (i) natureza
estrutural da religião no momento pré-migração, (ii) representação local sobre
que é religião da cultura receptora, (iii) como os migrantes chegaram e em que
contexto, (iv) natureza estrutural do grupo migrante, (v) natureza da reação
dos anfitriões (há preconceitos? Há integração?).
A partir das leituras anteriores nós (Costa, 2015) reorganizamos a
estrutura dos modos processuais da seguinte forma: 0 – Pré-transplantação, 1 –
Contato, 2 – Comparações, 3 – Ambiguidade, 4 – Recuperações, 5 – Inovações. A
observação dos contextos de recepção e da religião migrante passam a serem
vistos como parte integral do processo de transplantação, bem como o segundo
modo processual é visto como ocorrendo comparações em geral (positivas,
negativas ou neutras), e não apenas confrontações. De maneira sistemática, é
feita a distinção teórica entre as constantes do processo migratório (os modos
processuais) e as variáveis da transplantação – ver quadro sobre a teoria em
sua versão completa em Costa, 2015, ou na versão simplifica, à frente.
Sistematização da Teoria da
Transplantação das Religiões (Costa, 2015)
|
||
Objetivo da teoria
|
Modos processuais (constantes)
|
Variáveis
|
Entender a dialética entre atitudes adaptativas e conservadoras
no processo de migração de religiões
|
0 – Pré-transplantação
1 – Contato
2 – Comparações
3 – Ambiguidade
4 – Recuperações
5 – Inovações
|
(1) fatores externos,
(2) fatores cultural-religiosos,
(3) fatores de representação social;
|
Essa descrição das principais contribuições específicas já aponta
para possíveis sistematizações sobre a TTR. Um delas é que é uma teoria própria
da Ciência das Religiões, com contribuições mais recentes de historiadores.
Outro aspecto é que tem participação de autores da Alemanha, África do Sul,
EUA, Inglaterra e Brasil, tendo, assim, uma perspectiva bastante global e
aplicada a diferentes contextos. É notável que se trata de uma perspectiva
teórica de viés sócio histórico e cultural sobre a migração de religiões, mas
que pode ser aplicada para outros casos não religiosos, como práticas corporais
ou terapias (Apolloni, 2004; Moraes, 2007).
Quanto aos pressupostos gerais da TTR, podemos afirmar que o
objetivo dessa teoria é entender como ocorre os processos de migração de
religiões. Quem utiliza da TTR tem como objeto de estudo as reações da cultura
receptora e as estratégias de divulgação da religião em migração. O ponto
central da TTR é perceber como ocorre a dialética entre ambiguidade e
recuperação a partir de cada caso. Estes dois movimentos proporcionam os seis
modos processuais da transplantação, que podem ser vistos como constantes, numa
visão de longo prazo e seguindo diferentes ordens para ocorrer conforme as
condições presentes. Todo o processo é formado por muitas variáveis que
enviesam os rumos da transplantação.
O processo de
transplantação do Daoismo ao Brasil
O Daoismo (ou Taoísmo) é uma das tradições chinesas mais complexas,
e qualquer exposição sobre ela é parcial ou, no mínimo, sintética. Em nossa
pesquisa (Costa, 2015) buscamos apresentar um panorama geral para que leigos
nessa temática possam compreender o Daoismo. Aqui vamos apenas apontar alguns
aspectos constitutivos básicos e históricos que o leitor precisa saber.
Para uma compreensão sintética da tradição daoísta seguimos
Isabelle Robinet (1997), que interpreta o Daoismo como “um todo coerente”. Ou
seja, um complexo de tradições heterogêneas acumuladas e sintetizadas
continuamente de modo a gerar sistemas de sentido aos seus praticantes. O
cientista das religiões James Miller (2008, p. 1, tradução nossa) propõe
dividir a história do Daoismo em “quatro períodos: proto Daoismo, Daoismo
clássico, Daoismo moderno e o Daoismo contemporâneo”.
Em termos de proto Daoismo, significa que suas raízes se confundem
com a própria antiguidade chinesa, o que a faz ter a representação de ser uma
religião chinesa por excelência. No entanto, sua institucionalização enquanto
um grupo social autodenominado “daoísta” ocorreu somente no final da dinastia
Hàn 汉 (século 2 da Era Comum), início do período clássico. Entre os
diversos grupos e linhagens, destacamos a Unidade Ortodoxa (Zhèng yī 正一), também conhecida como Mestres Celestiais (Tiānshī 天师).
O período “moderno” (final da dinastia Táng 唐 em 907 e a dinastia Qīng 清, 1644-1911),
sendo marcada pela estruturação dessa tradição. Nesse momento houve a
publicação de seu Canon em sua maior extensão, a solidificação de alguns ritos
cerimoniais e de práticas individuais como a “alquimia interna”, bem como
algumas cosmovisões comuns a todas as linhagens formais de sacerdotes. Por fim,
o período contemporâneo é caracterizado pelo crescimento de preconceito dentro
da própria cultura chinesa devido a influências do colonialismo europeu, mas
também houve a internacionalização da
tradição e sua organização em associações civis.
Nesse último período, quando ocorreu sua internacionalização, o
Daoismo chegou também ao Brasil através de diferentes linhagens, seja por via
de migrantes chineses ou brasileiros que a buscaram na China (Costa, 2015).
Entre as diversas linhagens e tradições presentes aqui vamos analisar o caso da
Sociedade Taoísta do Brasil (STB), que pesquisamos empiricamente. A STB foi
fundada nos anos 1990 no Rio de Janeiro, e nos anos 2000 em São Paulo, por um
imigrante taiwanês naturalizado brasileiro, Wu Jyh Cherng (Wǔ Zhìchéng 武志成) e representa duas tradições daoístas: a
linhagem taiwanesa dos Mestres Celestiais e a Escola Oeste de Alquimia Interna
(Nèidān Xīpài 内丹西派). Vamos agora a cada um dos seis modos
processuais aplicados ao caso da STB.
(0) Pré-transplantação.
Do lado da religião migrante, dois aspectos marcam o momento histórico do
Daoismo antes de chegar ao Brasil: (I)sua
expansão mundial; e (II) a ferida colonial aberta na tradição que tem
enviesado tanto a forma como ela é representada visões
“orientalistas” externamente como a sua autorrepresentação. Do lado da cultura de recepção, a cultura brasileira apresentava
um momento histórico mais propício para o contato com culturas asiáticas,
observando uma abertura cultural a elementos dessa origem.
(1) Contato. Avanços tecnológicos nas comunicações e transportes,
somado a sucessivas aproximações políticas e culturas entre Brasil e China
desde o final do século XX, e mais fortemente no século XXI, possibilitaram
ondas de contato cultural entre Daoismo e cultura brasileira. As duas primeiras
ondas ocorrem com forte presença das representações orientalistas, sobretudo
pelo contato majoritário com fontes visuais e textuais daoístas através de
literatura e movimentos esotéricos e novaeristas. A última onda se distingue
pela presença de linhagens de transmissão tradicionais do Daoismo trazido por
iniciados.
(2) Comparações. Podemos diferenciar três tipos de comparações:
discriminatórias (ofensivas), por espelhamento (mais suaves), ou comparações
dialogais. A STB e seu fundador realizaram comparações dialogais e de
espelhamento buscando serem melhor compreendidos na cultura de recebimento
(Brasil), e raramente é observada comparações discriminatórias. Três temas são
mais recorrentes nas comparações: a relação entre “ocidente” e “oriente”, as
diferenças e semelhanças com a oferta dominante (Catolicismo) e outras
religiões (Budismo, Tradições Afro), e comparações entre a representação
brasileira comum sobre Daoismo (filosofia com um fundador ou patricarca) e o
que Cherng defendia ser essa tradição (religião ou tradição ancestral).
(3) Ambiguidades. As ambiguidades de significados ocorrem da
interação do Daoismo com a religião brasileira (Bittencourt Filho, 2001), ou
seja, com o as tradições espirituais brasileiras não institucionalizadas
amplamente praticadas pela população, especialmente com terminologias de matriz
cristã ou afro-brasileira. Cherng e os líderes formados por ele fizeram amplo
uso de “iscas” indiretas para “pescar” possíveis interessados, sendo este seu
modo principal de atrair futuros convertidos. Essas “iscas” podem ser vistas
como a estratégia redução ou seleção da divulgação num primeiro momento,
deixando possíveis aprofundamentos, detalhamentos ou comprometimentos dos
futuros convertidos para depois. Outra estratégia recorrente foi a de
acomodação, usada para falar de quanto a linguagem nativa brasileira é
acrescentada ao sistema daoísta, mas sem abrir mão da estrutura “original” da
tradição, caracterizando uma tática de “harmonização” com a cultura dos novos
adeptos. Por exemplo: um iniciado perguntou se poderia colocar uma imagem
cristã de “Maria” em seu altar daoísta, e o sacerdote de São Paulo respondeu
que poderia coloca-la em um dos lados do altar se houver uma divindade daoísta
no centro.
(4) Recuperação. Inferimos que a própria existência e divulgação do
Daoismo pela STB pode ser vista como um movimento de ortodoxia e ortopraxia do
Daoismo no Brasil, já que o Daoismo não era oferecido antes com sacerdotes,
cerimonias e iniciações formais. Observamos, tal como outros estudos anteriores
(Murray, Miller, 2013), que a STB conseguiu estabelecer em sua comunidade um
senso de autenticidade através de um senso de linhagem, proporcionada por uma
legitimação estrangeira. O formato e modo de funcionamento da STB têm como
parâmetro os esforços do seu fundador por oferecer um Daoismo entendido como
“autêntico”, mas adaptado à cultura brasileira, o que é a provado pelos membros
desse grupo daoísta, todos brasileiros/as. A decisão de investir em traduções
de textos em chinês foi uma tática de recuperação, e faz Cherng e seus
seguidores se destacarem de todas as demais comunidades daoístas brasileiras.
(5) Inovação. Defendemos que existem três dimensões da “inovação”: a)
inovação interna à religião; b) circularidade ou retorno, e c) nativização de
elementos estrangeiros. “a)” Há em um Daoismo tradicional praticado por
sacerdotes e iniciados sem ligação étnica chinesa e legitimados por fontes
daoístas chinesas. Também o uso de modelos católicos de organização ritual
(cadeiras viradas ao altar e ritos feitos em finais de semana) é algo novo ao Daoismo,
entre outros exemplos. “b)” O parâmetro de transmissão da tradição a
brasileiros criado pelos esforços de Cherng e seus discípulos são uma inovação
que circulou novamente à Táiwān, onde a ideia foi recebida e readaptada. “c)” Foi possível observar praticantes que
começaram a seguir o paradigma chinês daoísta de se relacionar com outras
culturas, modelos de comportamento e de cosmovisões, como o uso de calendários
astrológicos daoístas.
Conclusões: balanço teórico
da TTR
Na introdução indicamos
que nosso objetivo no presente texto é investigar a
utilidade do modelo da TTR. Após a exposição da teoria, e uma breve aplicação
de um recorte da nossa pesquisa de mestrado, é possível observar que a TTR é
útil ao entendimento sócio histórico e cultural do processo de migração de uma
religião outro espaço. Sua utilidade consiste principalmente em mostrar como
existem processos constantes (os seis modos processuais) que sempre ocorreram
em todos os casos estudados e provavelmente vão ocorrer em outros casos que
podem ser investigados. A TTR é também aberta a percepção das diferentes
variáveis que fazem cada transplantação ser singular para cada religião, o que
proporciona diálogos com outras teorias sócio históricas e culturais que possam
lhe complementar.
Também levantamos o questionamento de quais são os alcances e os
limites heurísticos da TTR. Em termos de vantagens, essa teoria é útil
principalmente por ser simples, clara e bem estruturada, podendo ser facilmente
aplicável em outros casos e por diferentes pesquisadores/as. Como dissemos, sua
estrutura aberta e compatível com outras ideias a torna uma ferramenta adequada
de ser usado junto a outros arcabouços teóricos, e, inclusive, por ser útil
para estudar não somente religiões, mas também sua explicação alcança vários
tipos de fenômenos culturais.
No entanto, em termos de limites, a TTR foi pensada para estudar
religiões institucionalizadas e específicas, além de ter uma perspectiva
temporal de longa duração histórica. Isso cria a dificuldade em estudar
religiões não institucionalizadas, como tradições populares ou novas religiões
ainda pouco estruturadas. Pelo fato de que a TTR fornece ferramentas para
estudar apenas uma instituição pela primeira vez, ocorre também a limitação de possibilitar
normalmente estudos de caso a caso – o que pode ser uma vantagem, dependendo do
que se pretende. Por fim, uma crítica que pode ser feita é que a TTR pode focar
demais em apenas duas culturas, numa visão apenas bilateral de um processo que
tende a ser multifocal e complexo. Para corrigir esse problema, basta levar em
conta que as tradições, inclusive as religiosas, podem ter mais de um centro, e
passar por mais de um local durante o processo migratório, sendo necessário
observar o impacto de cada um dos contextos que formam a transplantação.
Referências
Matheus Oliva da Costa é cientista das religiões com Licenciatura
Plena pela UNIMONTES, mestre e doutor em Ciência da Religião pela PUC-SP. Suas
pesquisas têm como foco as culturas chinesas, em especial, artes marciais,
religiões e filosofias. É coordenador da Licenciatura em Filosofia da Faculdade
EBRAMEC. Email: matheusskt@hotmail.com.
APOLLONI, Rodrigo Wolff. Shaolin à Brasileira: Estudo Sobre a
Presença e a Transformação de Elementos Religiosos Orientais no Kung-Fu
Praticado no Brasil. Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião. São
Paulo: PUC-SP, 2004.
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2007.
BAUMANN, Martin. The transplantation of
Buddhism to Germany: processive modes and strategies of adaptation. In Method
& Theory in the Study o f Religion, v. 6, n. 1, pp. 35-61, 1994.
BITTENCOURT FILHO, José. Matriz religiosa, religiosidade e mudança
social no Brasil. Tese de doutorado em Ciências Sociais. São Paulo: PUC-SP,
2001.
COSTA, Matheus Oliva da. Daoismo Tropical: Transplantação do Daoismo
ao Brasil através da Sociedade Taoísta do Brasil e da Sociedade Taoísta SP.
Mestrado em Ciência da Religião, PUC-SP: São Paulo, 2015.
COSTA, Matheus Oliva da.
Ciência da Religião Aplicada como o terceiro ramo da Religionswissenschaft: História, análises e propostas de atuação
profissional. Doutorado em Ciência da Religião. PUC-SP: São Paulo, 2019.
CLASQUIN, Michel. Transplanting Buddhism: an
investigation into the spread of Buddhism, with reference to Buddhism in South
Africa. Doctoral Thesis in Religious Studies. Pretoria: University of South
Africa, 1999.
GOLDBERG, Ellen. The Re-Orientation of
Buddhism in North America. In Method and Theory in the Study of Religion, vol.
11, 1999, pp. 340-350.
KOLLOTAI, Pauline. Transplanting Religion:
Defining Community and Expressing Identity. In:
Kim, Sebastian C.H.; Kollontai, P (eds). Community Identity: Dynamics of
Religion in Context. London: T&T Clark, pp. 57-68, 2007.
MILLER, James. Daoism: A Beginner’s Guide.
Oxford: Oneworld, 2008.
MORAES, Maria Regina Cariello. A Reinvenção da Acupuntura: Estudo sobre a transplantação da
acupuntura para contextos ocidentais e adoção na sociedade brasileira.
Dissertação de Mestrado em Ciências da Religião. São Paulo: PUC-SP, 2007.
MURRAY, Daniel e MILLER, James. The Daoist
Society of Brazil and the Globalization of Orthodox Unity Daoism. Journal of
Daoist Studies, vol.6, 2013, pp. 93-114.
PEREIRA, Ronam Alves. O Budismo leigo da Sokâ
Gakkai no Brasil: da revolução humana à utopia mundial. Tese de doutorado em
Antropologia. Campinas, SP: Universidade Estadual de campinas - Unicamp, 2001.
PYE, E. Michael. The Transplantation of
Religions. Numen, v. 16, n. 3, pp. 234-239, 1969.
ROBINET, Isabelle. Taoism: growth of
a religion. Translate by Phyllis
Brooks. Stanford: Stanford University Press, 1997.
SAID, Edward W. O
orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Tradução Tomás Rosa
Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
SHOJI, Rafael. The Nativization of East Asian Buddhism
in Brazil. Tese de Doutorado em
Religionswissenschaft (Ciência da Religião). Hannover, Alemanha: Universidade
de Hannover, 2004.
WACH, Joachim. Os ramos da Ciência da Religião.
Revista de Estudos da Religião (REVER), v. 18, n. 2, pp. 233-253, 2018.
Primeiramente, quero agradecer ao Mateus que me incentivou a colocar um trabalho aqui no Simpósio. Queria colocar uma reflexão sobre o tema. Todas as religiões ocidentais e orientais receberam, em larga medida, a influência do hermetismo, sua divulgação é atribuída às rotas comerciais (seda e especiarias), porém seguiram tradições distintas, ao ponto de Rudyard Kipling dizer "Leste é leste, oeste é oeste, e os gêmeos nunca devem se encontrar". Com base nesse ciclo comum, muito se trabalhou a nível religioso, exotérico e esotérico, filosófico no sentido de uma busca de uma crença comum. Minha pergunta é no sentido se haveria apenas transplante das religiões, ou também um certo grau de reconhecimento de uma linguagem ancestral comum, como imagem do que seria entre nós, o reconhecimento da existência de uma língua indo-européia original?
ResponderExcluirObrigado pela pergunta, Luiz. Fico feliz com sua participação.
ExcluirDo meu ponto de vista como pesquisador da Ciência das Religiões, sei dizer que essa ciência se preocupou em responder sua pergunta no século XIX, especialmente através do seu criador, Max Muller, mas de maneiras parecidas por outros também, como Daniel Chantepie de la Saussaye.
Ao longo do século XX a pergunta sobre possíveis "origens" comuns perdeu o sentido, tanto na Ciência das Religiões como na História ou Antropologia. A preocupação se tornou mais investigar de maneira mais contextual e a partir de fontes primárias (pessoas, documentos etc.), o que fez reinar uma tendência mais historicista, culturalista e de objetos de estudos específicos, desacreditando em teorias gerais como uma suposta “origem comum”.
Contudo, desde os anos 1990, temos na Ciência das Religiões e na Antropologia o retorno de linguagens e interesses que chamarei de "cognitivos". Na minha área chamamos de "neo comparativismo" e "ciência cognitiva das religiões", em cientistas das religiões como Armin Geertz ou Luther Mantin, e pelo pesquisador interdisciplinar Robert McCauley. Em geral, trata-se da união das modernas teorias e metodologias biológicas, das neurociências e da Arqueologia com as Ciências Humanas. Nesses casos, o interesse não é em uma "origem comum", mas no impacto da "evolução biológica" (no sentido neo darwiniano atual) dos nossos ancestrais nas culturas da humanidade, que pode ser resumido no interesse na "evolução cultural" num sentido bem específico do século XXI, que é bem diferente do século XIX.
Oi Matheus,
ResponderExcluirserá possível, no futuro, pensar um 'daoísmo brasileiro'?
grande abraço!
André =)
Olá André. Obrigado pela pergunta.
ExcluirNa verdade o que eu e outros pesquisadores canadenses (D. Murray e J. Miller) concluímos em nossa pesquisa de campo junto aos praticantes daoistas da Sociedade Taoísta do Brasil é que eles fazem um Daoismo simultaneamente chinês, brasileiro e híbrido.
Por outro lado, autores norte americanos como Siegler tem falado de um "American daoism" (Daoismo estadunidense), que seria uma tradição com contornos próprios, não visto em outro local, nem na China.
Algo nesse sentido pode ser visto aqui, mas ainda é pouco expressivo. Pretendo estudar alguns grupos assim no futuro.
E você não acha que elas podem vir a ser incorporadas nas religiões brasileiras, como no caso da umbanda? A Umbanda fez uma aproximação muito interessante com o Hinduísmo na década de 50, e hoje eles tem a 'linha do oriente', que incorpora um diálogo com religiões asiáticos. Enfim, voando no tema... =)
Excluirobrigado por estar conosco!
Vamos pensar juntos. Eu que agradeço.
ExcluirHoje mesmo tive uma conversa sobre semelhanças entre Umbanda e Daoismo. Realmente visualizo essa possibilidade de hibridação em solo brasileiro. No caso das tradições hindus, o conceito de "carma" já era entendido, de alguma maneira, por parte da população brasileira, devido à difusão do Kardecismo. Para o Daoismo (ou algum dos seus elementos) ser recebido em maior escala, seguindo algumas teorias, deveria haver alguma continuidade de capital cultural entre Daoismo e cultura brasileira, como houve com a noção de "carma". E, claro, isso teria que ser notado e abraçado por grupos que difundiriam isso. É por isso mesmo que há alguns anos tenho argumentado em publicações que as novas religiões chinesas (Falun Dafa, Yiguandao, mestra Qinghai) tem bem mais adeptos aqui do que as religiões tradicionais chinesas, devido a maior adaptabilidade com a cultura brasileira que aquelas apresentam.
Ricardo Pereira Pinto - UFF 07/08/2019
ResponderExcluirOlá Matheus Costa !
Gostaria de refletir melhor se todas as etapas que foram descritas de forma sistemática como estratégia no processo de transplantação migratória é na prática monitorada de maneira racionalmente consciente por todas as religiões ou pode acontecer de algumas tradições ancestrais cumprir com este mesmo processo de forma inteiramente intuitiva?
Olá Ricardo, obrigado pela pergunta.
ExcluirAcredito que a migração de uma religião é um processo tanto sistemático (ainda que não consciente ou planejado), e, ao mesmo tempo, intuitivo. Não vejo como ser "inteiramente" intuitivo ou "inteiramente" sistemático. O ser humano, que é o agente que realiza a migração, é racional e intuitivo, entre outros atributos.
Ricardo, foi nesse sentido que refletiu, ou pensou em outro coisa?
Abraços
Muito obrigado Matheus. Eu também entendo que existe uma proporção de razão e intuição na migração de uma religião uma vez que são atributos inatos ao ser humano. Grande abraço !
Excluir