SINOLOGIA
E ESTUDOS CHINESES EM PERSPECTIVA
Bony
Schachter
Por meio deste breve
ensaio, eu gostaria de colocar em questão para o público brasileiro algumas
considerações acerca dos termos “sinologia” e “estudos chineses”. Este ensaio,
no entanto, não é uma tentativa de historicizar tais categorias. Para isto,
seria necessário muito mais espaço do que aquele dedicado à tentativa de se
apresentar a um público leigo algumas considerações básicas acerca do estado da
questão, mesmo quando tal público se sente especialista ou apto a falar sobre a
China em virtude de participação política, comercial ou mesmo pela simples
vivência em território chinês. Tais fatores – envolvimento diplomático,
comercial, ou simplesmente pessoal com a China – não formam um sinólogo, nem o
profissional de estudos chineses. Curiosamente, nem mesmo o domínio do mandarim
falado faz de alguém um sinólogo. Se assim fosse, os chineses que falam
mandarim (sim, há os que não falam) seriam sinólogos, mas não são. A seguir,
tentarei fazer uma distinção entre sinologia e estudos chineses. Esta distinção
não deve ser tomada literalmente. De fato, muitas universidades americanas
criaram departamentos de Chinese Studies (estudos chineses), que abrigam tanto
aquilo que eu chamo de sinólogos como os profissionais de estudos chineses.
Existe, no entanto, uma clara distinção de objetivos, métodos e maneiras de
pensar entre tais profissionais. Aqueles que se preocupam majoritariamente com
filologia e história são sinólogos. Aqueles que veem na China uma força
econômica, política e diplomática, estando voltados para os problemas imediatos
do mundo de hoje, são profissionais de estudos chineses. O papel das
universidades, nesta história, é o de agrupar profissionais de ambas as
vocações de modo a aproveitar o potencial político dos mesmos. Mas isto requer
visão por parte das iniciativas privada e estatal.
Sinologia
e sinólogos – como uma forma de pensar
sobre a China, a sinologia é uma disciplina obviamente européia. Na China não
há sinologia, mas “Estudos Nacionais” (guoxue),
sendo isto um tema para outro texto. Para alguns de seus praticantes, a língua
portuguesa tem um lugar privilegiado nas origens da sinologia, sendo um
dicionário português-chinês uma das primeiras obras – e, para alguns, a
primeira obra – da sinologia ocidental. É interessante notar que, enquanto
empreitada cultural européia, a sinologia surgiu durante o período moderno, mas
antes das grandes revoluções políticas e intelectuais (Revolução Francesa e
Marxismo) que moldaram a modernidade próxima. Não é de se estranhar, portanto,
que em seus primórdios a sinologia refletisse não tanto um estudo da China como
ela é, ou como ela seria descrita por várias camadas da elite chinesa e de seu
povo, mas uma reconstrução de uma China ideal, que pudesse satisfazer tanto as
agendas de missionários cristãos (os primeiro sinólogos) quanto de elites
burocráticas – e, portanto, intelectuais – chinesas em sua vontade de realizar
a purificação filosófica da China. É assim que nasce a ideia da China
filosófica cujo rei é Confúcio, uma fantasia que permeia a imaginação de
parcela significativa das elites chinesas ainda hoje. O caráter elitista e
conservador da sinologia se reflete, também, em seus métodos e conquistas.
Sinologia é, ao fim e ao cabo, filologia. Seus objetivos são a compreensão da
língua escrita em seus vários registros, traduções de obras consideradas
clássicas, compilação de dicionários e obras de referência. Mais recentemente,
pesquisadores de budismo e daoísmo descobriram que a China é muito mais do que
a terra dos filósofos. Tais pesquisadores trouxeram, para o campo da sinologia,
metodologias oriundas da sociologia, da antropologia e dos estudos de ritual.
Eles mostram que, ao contrário do que queriam os missionários cristãos da
Europa pré-marxismo, o mundo chinês não é orientado pela filosofia apenas, mas
por várias estruturas sociais onde rituais confucionistas, budistas e daoistas
(os três ensinamentos, ou sanjiao)
cooperavam (e competiam) de modo a manter a coesão social, de acordo com
valores elitistas e conservadores extremamente semelhantes, senão iguais.
Estudos
chineses e seus profissionais – a
sinologia não se confunde com os estudos chineses, embora não exista nenhum
conflito entre tais disciplinas. De fato, alguns sinólogos, em sua crítica da
sinologia, tentam se afastar da mesma em nome de uma suposta superioridade de
outras metodologias. Um exemplo interessante é aquele de Edward Davis, que
escreveu um excelente livro sobre possessão espiritual na dinastia Song. No
prefácio de seu livro, Davis afirma que reconhece as conquistas, a importância
e o papel da sinologia quando o assunto são estudos da dinastia Song e suas
manifestações religiosas. Entretanto, ele se mostra profundamente reticente em
relação às limitações da mesma. Davis vê na sinologia aquilo que, de fato, ela
é: um approach textual aos problemas
chineses. Davis deseja, no entanto, colocar e responder questões maiores,
questões que tradutores, compiladores de dicionários e filólogos no sentido
estrito do termo não seriam capazes de pensar. O especialista americano queria
conceitualizar as relações sociais chinesas durante o período Song em termos de
sua significação no que tange ao acontecimento da possessão ou transe espirituais.
Quando o estudo da China se distancia do problema meramente filológico, nós
começamos a sair do território da sinologia strictu
sensu – que é basicamente história e filologia – e começamos a entrar no
campo dos estudos chineses.
Uma diferença imensa entre
os dois campos é que os estudos chineses requerem menor especialização do
pesquisador em termos de conhecimento filológico e histórico, uma vez que o
campo de estudos chineses está mais imediatamente conectado às realidades
cotidianas contemporâneas. Relações internacionais, economia, diplomacia,
direito e outras áreas fundamentais para o bom andamento das relações entre a
China e outras nações são os problemas que interessam aos estudos chineses.
Profissionais de estudos chineses, no entanto, precisarão constantemente contar
com a ajuda de sinólogos strictu sensu
pois os mesmos detém um domínio do idioma, da história, da mentalidade, da
religiosidade e maneira de pensar dos chineses que simplesmente não interessam,
por exemplo, para aqueles que desejam estabelecer apenas parcerias políticas e
comerciais. Isto nos leva ao problema da língua, e de como generalizações
baratas não funcionam quando o assunto é China. O único caminho é a
profissionalização universitária, seja para sinólogos ou para profissionais de
estudos chineses.
O
problema da língua – gostaria de discutir este
problema levando em conta minha experiência pessoal como pesquisador. Nunca me
interessei muito pelo que chamo, neste breve ensaio, de estudos chineses. Mas a
China não é a terra das generalizações. Na minha inocência juvenil, achei que
aprender o mandarim seria suficiente para pesquisar a religião daoista. Eu
estava errado. Por sorte, meu percurso começou com o estudo do chinês clássico.
Depois, comecei a ler e traduzir textos do cânone daoista, cuja linguagem
peculiar exigem grande devoção sinológica: sendo uma tradição litúrgica, os
textos daoistas contém termos que não fazem sentido para ninguém, apenas para
aqueles que praticam rituais daoistas no contexto das relações mestre-discípulos.
Quando fui a Taiwan aprender rituais daoistas pessoalmente, me deparei com
outra realidade: ninguém iria cantar em mandarim para me agradar. Lá, as
pessoas cantam e aprendem rituais na língua local (minnanhua), de modo que nenhuma exceção seria feita ao estrangeiro;
e com razão. Obviamente, o percurso para aqueles que querem estudar e pesquisar
o daoismo é extremamente específico e difícil. O chinês moderno não é
suficiente. O domínio do mandarim, a língua falada, não é suficiente. Caso você
estude daoismo numa comunidade local, provavelmente deverá aprender o dialeto
local. Além disto, é necessária uma grande abertura antropológica de
entendimento do outro: a não ser que você queira olhar para o daoismo com olhos
brasileiros, pseudo-ocidentais, e meio-cristãos, você precisará se submeter ao
exercício de aprender com os mesmos seus rituais, suas músicas e, enfim, como
“virar gente”. Esta abertura antropológica, no entanto, será difícil mesmo para
os chineses que não nasceram em famílias ou ambientes de grande influência
daoista. Será ainda mais difícil para o estrangeiro. O problema da língua
também irá ser um grande obstáculo para aqueles que leem filosofia chinesa
antiga, cujos documentos excavados estão escritos em uma caligrafia completamente
estranha àquela do chinês moderno. O mesmo se aplica para profissionais de
estudos chineses, para quem o mandarim não será suficiente, especialmente em
áreas como Hong Kong e Cingapura.
A
profissionalização é o unico caminho – o mero
domínio da língua falada não forma o sinólogo, pois se assim fosse nós teríamos
que competir com mais de um bilhão deles, os chineses nativos. O sinólogo e o
profissional de estudos chineses precisam passar por treinamento universitário
específico, que lhe forneça ferramentas conceituais e práticas para resolver os
problemas filológicos, históricos, antropológicos, políticos, comerciais etc a
que tais profissionais se dedicam. Todos estes problemas são importantes e
devem ser tratados, com seriedade, por pessoas bem formadas e capacitadas. Por
meio deste pequeno ensaio, portanto, tenho o objetivo de propor
clarificações conceituais que possam ser úteis para o público lusófono.
Em tempo:
Homenagem à Leonardo Cláudio Rosa
Referências
Bony Schachter é Doutor em
História pela Fudan University, China.
DAVIS, Edward. Society and the Supernatural in Song
China Hawai’i: University of Hawai’i Press: 2001.
PULLEYBLANK, Edwin G. Outline of Classical Chinese
Grammar Canada: UBC Press, 1995.
WILKINSON, Endymion. Chinese History: A Manual. Cambridge
and London: Harvard University Asia Center, 1998.
você poderia explicar, sendo sinólogo, o que quer dizer com "chinês é uma língua de eunuco"?
ResponderExcluirJoão Hu
Caro João, obrigado pela sua pergunta. Eu havia escrito uma longa resposta, mas ela acabou sumindo quando apertei em publicar. Resumindo o que eu havia dito, é uma língua de eunucos... e mandarins; isto é, o chinês é uma língua daqueles que exercem alguma forma de poder político. Os eunucos, como uma das mais fortes instituições da história política chinesa também são muito representativos da força do povo chinês e dos extremos requeridos pela participação na vida política da China. Não é à toa que o chinês moderno também seja chamado por "mandarim", mas essa denominação só leva em conta um dos pólos de poder político na China imperial, não dando aos eunucos sua devida parcela de reconhecimento. Não houve em meu uso do termo qualquer conotação negativa, caso seja esta sua preocupação.
ExcluirApresentei neste simpósio, a análise de uma obra literária da escritora Pearl Buck, apresentada como sinóloga. Pearl. S. Buck (1892 – 1973) nasceu nos Estados Unidos, filha de pais missionários viveu cerca de três décadas e meia na China, o que propiciou grande conhecimento da cultura, da língua e da realidade chinesa, sendo considerada uma especialista em questões orientais, sobretudo acerca da China. Suas ideias sobre a China foram transmitidas através dos seus romances, posicionamentos na imprensa americana e das suas intervenções políticas.
ResponderExcluirFoi aguerrida na luta pela revogação das Chinese Exclusion Acts, lei que proibia a imigração de trabalhadores chineses nos Estados Unidos e contra as guerras. Também foi insistente nos temas do preconceito racial e em defesa dos direitos das mulheres e minorias. As suas obras e os romances sobre a China, em particular, e sobre o Oriente, em geral, constituíram em importante instrumento para mudar a ideia que os Estados Unidos tinham sobre os povos asiáticos (FRANCO, 2007)
De acordo com sua pesquisa e com os dados apresentados acima, essa autora é de fato uma sinóloga?
Oi Vânia, obrigado pela sua questão! Eu acho que neste caso a pergunta correta não é o que eu penso de Buck, se ela é ou não sinóloga, mas sim: como Buck queria ser vista e como a sociedade em que ela viveu a via? Ela queria ser vista como sinóloga? Eu não sei, você como especialista no assunto pode me responder. Grande abraço.
ExcluirOi Bony, ela não se apresenta como tal, é apresentada.. Minha preocupação é estar usando/repetindo o termo específico de uma linguagem de especialidade incorretamente...Só queria tirar essa dúvida.
ExcluirAbraço!
Vânia Maria Siqueira Alves
Oi Bony,
ResponderExcluirA Sinologia tem sido pensada como uma herança pós-colonial, em termos de construção de área de saber. Mas você pensa que ela é possível como uma área interdisciplinar, no caso brasileiro - ou você imagina uma total impossibilidade dela vir a surgir no país?
Oi André, obrigado pela pergunta. Você não está fazendo justamente os esforços para que uma sinologia nova apareça no Brasil? Como eu poderia achar impossível de isto acontecer aqui? Obrigado por organizar este evento. Não pare com seus esforços, e vamos unindo forças pras coisas acontecerem. Abraço forte!
ResponderExcluirVamos tentando! =D
ExcluirMas penso que ainda precisamos, de fato, de um norte teórico.
abraço!!
Olá, Thiarlison, obrigado pela pergunta. Penso que é necessária um esforço conjunto de todos os setores envolvidos.
ResponderExcluir