Maria Eduarda Fabrin e Rafael Egídio


O IREZUMI, POR ADRIANA VAREJÃO: A REPRESENTAÇÃO COLONIAL A PARTIR DO CORPO TATUADO
Maria Eduarda Carrenho Fabrin
Rafael Egidio Leal e Silva

Este breve artigo tem como objetivo analisar, ainda que de forma singela, a apropriação da Irezumi pela artista brasileira Adriana Varejão (1955) como forma de retratar o processo de colonização a partir da ideia do corpo tatuado. Enfocamos nossa discussão na apropriação que a artista faz tanto da técnica de tatuagem japonesa, a irezumi, da temática do Barroco e da forma que nos traz assuntos da contemporaneidade. Nosso problema vai além da questão da forma e conteúdo da arte, mas principalmente como a artista enxerga a questão do oriente ressignificado com a colonização do ocidente. Justificamos esta apresentação tanto academicamente, por se tratar de um interessante exercício de análise pictórica e de contexto artístico, e também como forma de trabalho pedagógico aos alunos, mostrando as múltiplas possibilidades da arte, além dos diálogos que se podem estabelecer entre as ideias de oriente e ocidente.
Para nossa fundamentação teórica, utilizamos as teses do psicólogo bielorrusso Lev Vigotski (1896-1934), em sua “Psicologia da arte” (2001), obra esta que questiona e busca desvendar os aspectos da vivência estética retirando-lhe os véus do misticismo das visões anteriores, cujo foco é a inspiração e subjetividade do autor. Este autor considera que a obra de arte é um sistema de excitantes organizados consciente e intencionalmente para que provoquem uma reação estética. A análise da estrutura dos estímulos possibilita a recriação da estrutura da reação. Estudar a forma da obra artística por meio da análise funcional de seus elementos e estrutura à recriação da reação estética e ao estabelecimento de suas leis gerais, consiste na sua proposta.
Por outro lado Vigotski (2001) destaca que a obra de arte é uma unidade de forma e conteúdo que formam uma contradição afetiva – séries mutuamente contrapostas de sentimentos, que se enfrentam e destroem entre si, como autêntico efeito da obra de arte, conforme o conceito de catarse aristotélico. Para ele, o artista sempre supera o conteúdo com a forma – a ação psicológica de elementos formais – estes adaptados premeditadamente para realizar a ação estética. A contradição existente entre a construção da forma e o conteúdo artístico é a base da ação de catarsis da reação estética. Qualquer obra de arte esconde em si o desacordo entre o conteúdo e a forma – com a forma o artista reconstrói o conteúdo como se aparentemente o anulasse.
A arte, portanto, se baseia na unidade sentimento e fantasia. Sua peculiaridade mais evidente é provocar no expectador afetos orientados contrariamente e retém, graças ao princípio da antítese, a expressão motora das emoções, fazendo chocar impulsos contrapostos, eliminando os afetos do conteúdo, os afetos da forma, levando à explosão, à descarga da energia nervosa. É uma conversão dos afetos, uma reação explosiva que leva à descarga das emoções provocadas – o que consiste a catarse estética e onde reside o encanto da obra de arte como modo de lapidar os sentimentos e emoções.
Desta forma, a artista brasileira criou a série de obras artísticas “Irezumi”, disponibilizada em seu sítio oficial (2015), além de ter sido exposta na 22ª Bienal de São Paulo, em 1994. Em tais obras foram utilizados materiais como poliuretano, emplastro sabiá, maca, ventosas, bolsas de soro, além da técnica de pintura a óleo.
A irezumi consiste na tatuagem tradicional nipônica, o que, em suas origens, de acordo com o sítio especializado tattooers.net (2016) foi a transposição da xilogravura para a carne humana. Os artistas, ao tatuar a pele, se utilizavam das mesmas ferramentas, como formões e goivas, além da tinta Nara. Tradicionalmente, a escolha do projeto da tatuagem (cores e desenho) era exclusividade do artista, cuja obra poderia demorar anos até ser completada. Vemos aqui o aspecto da transformação do corpo como obra do trabalho humano, tanto em relação ao instrumento utilizado, como na posição do artista que imprime à pele e carne de outra pessoa sua subjetividade em forma de desenho. O termo “Irezumi” por parte de Varejão (1994-1999) tem a ver com a “ideia de inserção de tinta na pele, com o objetivo de deixar uma marca permanente, usualmente decorativa” (SCHWARCZ; VAREJÃO, 2014, p.326). O “sentido literal” da palavra, segundo Schwarcz (2014), constitui na introdução de tinta, ou também implica a ideia de conservação e decoração. A tatuagem, para a artista não se apaga, deixando marcas indeléveis no corpo, sendo portanto o corpo suporte pictórico para sua obra.
Por outro lado, nesta série é utilizado o Barroco, a azulejaria e a colonização brasileira como conteúdo implícito e explícito de sua obra. Não apenas a pintura realizada em um corpo descarnificado, sendo que alguns pedaços são apresentados como cirurgicamente separados pele e carne, ou ainda como que fossem apenas arrancados e colocados como um amontoado de vísceras e músculos além de manchas de sangue que retiram a linearidade ilusória de controle dos sentidos da artista e também do consumidor de sua arte. 
A referência barroca tomada pela artista em grande parte de seus trabalhos, passa a ter outras significações dentro da série aqui citada. A partir de uma poética fincada em feridas do passado, Varejão focaliza o suporte artístico como sendo o próprio corpo. Corpo este que carrega cicatrizes e se apresenta análogo ao território brasileiro. Tendo em vista quão indelével se faz uma marca na pele através da prática da tatuagem, as obras de “Irezumi” compõem um imaginário acerca da colonização, ocorrida concomitantemente à inserção da arte barroca no Brasil. Em relação à questão do poder da Igreja sobre a arte nesse momento histórico, consideramos, assim como Argan (2004, p.40), que “os dois grandes problemas” desta instituição no século VXII são, de fato, a “proteção e a propagação da fé: proteção contra as ‘heresias’ protestantes mediante a devoção e o culto de massa; propagação da revelação entre as populações ‘pagãs’”.  O estilo barroco configura-se como movimento contra-reformista, uma vez que propunha propagar a fé cristã em detrimento dos avanços do protestantismo.  Com isso, nas referidas produções artísticas existe um corpo simbólico que se encontra em práticas de cura e que transcende a fisiologia do sangrar. 
Nas obras aqui a analisadas é possível perceber símbolos religiosos e elementos históricos que dialogam com a estética contrastante do Barroco, dada pelo antagonismo entre luz e sombra, claro e escuro e sagrado e profano. Assim sendo, apresentaremos algumas para que o leitor possa conhecer e se interrogar acerca da obra da artista. A primeira obra apresentada é “América” (figura 1), onde a artista nos apresenta pedaços de pele tatuada extirpada como que jogada sobre chão azulejado bastante higienizado. Podemos distinguir três grandes pedaços de carne, que, apesar da estranheza inicial podem ser remetidos a mapas. Na pele estão tatuados diversos desenhos, sendo que no primeiro pedaço, da esquerda para a direita, vemos os temas do Renascimento e às Grandes Navegações, com uma Vênus que também remete a uma figura indígena, uma caravela e nitidamente a palavra AME (ao contrário), tanto podendo significar o início da América, como o contrário do sentimento de amor, especialmente o religioso cristão que foi a prática de dizimação dos povos indígenas. O segundo pedaço traz iconografias religiosas, como anjos (no estilo barroco), sagrado coração, uma cruz, além de outras imagens religiosas. O terceiro pedaço parece apontar para o presente, com desenhos de tatuagens de nossos dias, como um coração com adaga, pássaros, uma vela, além de outras imagens. Passado e presente colonial em sua violência e religiosidade são colocadas na tela.


Figura 1: América, 1996, óleo sobre linho e tela, 195 x 165 cm. Disponível em: www.adrianavarejao.net

Na figura 2, “Pele tatuada a moda de azulejaria” temos pedaços de carne e pele já discerníveis, sendo três partes distintas: os antebraços e mãos (direito e esquerdo) e as costas. Embora os pedaços sejam nítidos (diferente da figura 1), não há na pintura a mesma higienização do fundo como anteriormente mencionamos. Aqui respingos e manchas de sangue sugerem não apenas desleixo, mas sinais de violência também. A azulejaria é a típica lusitana, remetendo à colonização da América portuguesa. Nas figuras das mãos (que são básicas para o trabalho, especialmente se pensarmos que a colonização foi essencialmente exploratória da mão de obra escrava) temos flores e plantas, além de uma figura angelical, o que sugere que as mãos forjaram uma espécie de paraíso. Na figura central, as costas, temos a dualidade do bem e mal representada com a figura de um anjo (acima) e um demônio (abaixo), tendo ao centro uma figura de anjo, em destaque. Novamente temos a religião em evidência, encaminhando nosso olhar para o processo de violência colonizatório, o que, nos remete a Berger (1985), com o papel da religião como forma de construção do mundo social.

Figura 2: Pele tatuada a moda de azulejaria, 1995, óleo sobre tela, 140 x 160 cm. Disponível em: www.adrianavarejao.net

A terceira obra (figura 3) “Laparotomia Exploratória I”, mostra três grandes pedaços de pele extirpados, aqui com contornos muito nítidos e como se fossem cauterizados. Fazendo relação com o título da obra (sendo a laparotomia exploratória o procedimento de abertura abdominal para o exame dos órgãos internos), diversas vísceras (também tatuadas) estão espalhadas pelo assoalho, que apresenta algumas manchas de sangue (sem denotar a violência da figura 2). No entanto, as tatuagem dos grandes pedaços de pele são figuras nipônicas, onde o aspecto específico da colonização parece ter sido não explorado pela artista. Dentro de cada um dos grande pedaços, podemos observar buracos de carne enegrecida de onde parecem ter sido retidas as vísceras, expostas ao expectador. Seria aqui uma forma de levar o consumidor desta obra a compreender a colonização – mesmo em situações diferentes da América portuguesa – como a laparotomia que retira as entranhas da sociedade para a serventia da sociedade colonizadora?

Figura 3: Laparotomia Exploratória I, 1996, óleo sobre tela e massa epoxi, 190 x 220 cm. Disponível em: www.adrianavarejao.net

Finalmente, temos a Figura 4, Laparotomia Exploratória II, onde estão tatuadas sobre a pele imagens que remetem à colonização lusitana na América. Três grandes pedaços de pele (duas costas e uma do antebraço e mão) além de vísceras e sangue espalhados pelo assoalho completam a impressão da figura 3. Assim, novamente temos a presença de figuras religiosas do barroco, caravelas, e indígenas e figuras da fauna retratadas na colonização.   Grandes buracos e cortes nos pedaços de pele maiores nos indicam a sanha furiosa do colonizador, abrindo grandes, irregulares e violentos canais onde a cultura, vidas e riqueza escorreram de dentro dos corpos, retirando e expondo seus órgãos internos.


Figura 4: Laparotomia Exploratória II, 1996, óleo sobre tela e massa epoxi, 195 x 165 cm. Disponível em: www.adrianavarejao.net

Ressaltamos que a série “Irezumi” de A. Varejão possui várias outras telas e instalações, sendo que selecionamos estas para os objetivos deste texto. Podemos percebe que a autora transpõe a tela e a pele, oriente e ocidente, tatuagem e pintura, colonização e contemporaneidade, religião e violência, bem e mal, Céu e Inferno, além de inúmeros outros pares contrapostos que levam o expectador a se tornar também parte do contexto e da história que se refere a obra artística. A partir da interpretação, a artista nos enseja retomar tanto o saber histórico clássico para uma reflexão de nossa constituição histórica e social.
Além da interpretação, podemos aqui abrir o espaço para que a arte pictórica também seja trabalhada, de forma reflexiva, com alunos do Ensino Médio, como forma de incentivo à imaginação, fantasia e reflexão histórica e humanística, uma vez que a obra de arte, segundo Neckel (2005, p.2) “é carregado de interfaces históricas, sociais e ideológicas e o artista se insere em uma determinada formação discursiva para produzir seu dizer que tanto pode ser da ordem do verbal ou do não verbal”. Desta forma, a possibilidade do ensino das Humanidades através da arte deve ser um exercício constante por parte do professor.
Referências
Maria Eduarda Carrenho Fabrin é professora de Artes Visuais, sendo atualmente professora substituta do Instituto Federal do Paraná Campus Umuarama.
Rafael Egidio Leal e Silva é professor Me. de Sociologia do Instituto Federal do Paraná Campus Umuarama.
ARGAN, G. C. Imagem e persuasão: ensaios sobre o Barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
BERGER, P. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São Paulo: Paulus, 1985.
NECKEL, N. R. Análise de Discurso e o Discurso Artístico. In: SEMINÁRIO DE ESTUDOS EM ANÁLISE DO DISCURSO, 2.,2005, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: UFRGS, 2005. p. 1-8. Disponível em:http://www.analisedodiscurso.ufrgs.br/anaisdosead/2SEAD/SIMPOSIOS/NadiaReginaMaffiNeckel.pdf. Acesso em: 3 jun. 2019.
SCWARCZ, L.; VAREJÃO, A. Pérola imperfeita: A história e as histórias na obra de Adriana Varejão. Rio de Janeiro: Cobogó, 2014.
VAREJÃO, A. Disponível em: http://www.adrianavarejao.net/home. Acesso em: 10 mar. 2019.
VIGOTSKI, L. S. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001

6 comentários:

  1. Boa Noite Amigo Rafael e Maria Eduarda!
    Primeiramente Parabéns pelo Texto e por nos apresentar a essa Exposição dessa Artista.
    O Texto mostra a Tatuagem como uma forma de arte usada na Exposição da Artista.
    A pergunta é se acordo com as comparações da Artista, ao mesmo tempo com um mundo cada vez mais acelerado quando se fala em Capitalismo e Materialismo, seria a Tatuagem a Arte em Evidência nos dias de Hoje?
    Valmir da Silva Lima.

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    1. Boa tarde, Valmir!

      A questão nos leva a pensar a tatuagem inserida em nosso contexto, o que é interessante para observarmos meios de subjetivação na contemporaneidade.
      Tal prática foi popularizando-se como linguagem artística a partir da década de 60 do século XX, quando movimentos de contracultura começam a usar a pele como suporte para expressão, fazendo a tatuagem ir além da representação de símbolos que poderiam vir a significar soberania, marginalidade, decoração, etc, diversas finalidades para cada tempo e cultura.
      Essas marcas na pele foram deixando de fazer parte apenas das tradições milenares e aos poucos integrando a sociedade. Como o prof. Rafael disse, a tatuagem ganha um novo sentido hoje.
      Valmir, acredito que ela seja ‘uma das’ artes em evidência, já que são várias as linguagens que compõem o cenário artístico contemporâneo. Mas, pensando na abordagem que a artista faz referente à pele-tela, faz-se necessária uma reflexão sobre esse suporte ambulante que carrega inscrições artísticas.
      Penso que a busca por uma identidade vem se tornando cada vez mais difícil nesse mundo acelerado, e que é por meio do corpo que o sujeito se inscreve na história e na cultura que o constituem, sendo a arte desde sempre um belíssimo caminho para tornar possível esse encontro.
      Obrigada pela pergunta!
      Maria Eduarda Carrenho

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  2. Olá Valmir, obrigado por ler nosso texto e por inaugurar o debate. Acho que a professora Maria Eduarda poderá contribuir mais com esse debate, mas acredito que a tatuagem é uma arte que insere a arte no corpo e o corpo na arte de forma milenar, o que demonstra a relação subjetividade e historicidade. Claro que em nossos dias a tatuagem ganha um novo sentido, principalmente com a ostentação do individualismo autocentrado que vivemos, mas ainda é um indicativo que precisamos de arte. Na alma, e no corpo! Valeu!

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  3. Boa noite, obrigada por disponibilizar um tema tão maravilhoso e provocador, eu adorei!!A arte traz o recado certo por caminhos inimagináveis.Quando a autora coloca em xeque Oriente e Ocidente,pensei na abordagem que geralmente é feita inferiorizando costumes e tradições orientais. A arte sempre responde a isso tudo. Gratidão!!

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    1. Olá Fabiana! Muito obrigado pelo seu feedback! Nossa intenção foi realmente de provocar esta reflexão, e até irmos além de pensarmos as inúmeras possibilidades de trabalho em sala de aula. Gratidão a você!

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    2. Boa noite, Fabiana!
      Ficamos felizes em saber que o tema tenha despertado reflexões.
      Que sejamos provocados por esse caminho repleto de significados.
      Obrigada!

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