Wellington Santos


CONSTRUINDO UMA REPRESENTAÇÃO SOBRE A IDENTIDADE CULTURAL DO IMIGRANTE JAPONÊS ATRAVÉS DO ROMANCE “NIHONJIN” DE OSCAR NAKASATO
Wellington Lucas dos Santos

Introdução
A obra de Oscar Nakasato intitulada Nihonjin é um trabalho que vai além do campo literário romancista, ainda que premiado entre tal gênero, é uma rica pesquisa que evoca a memória da imigração japonesa e a consolidação deste povo em terras brasileiras.
O que nos propomos a realizar, por meio do estudo do romance, é construir a representação dos imigrantes japoneses em solo brasileiro, mobilizando os conceitos de identidade cultural propostos por Stuart Hall, em um esboço que escapa das figurações estereotipadas criadas pela distante experiência ocidental sobre o extremo oriente e apontar para uma análise baseada no hibridismo cultural pelas relações entre o capital cultural japonês e o modo de vida brasileiro.
O livro de Nakasato é uma denúncia em forma de prosa, que conduz o leitor a um vasto inventariado histórico sobre a situação social, política e cultural dos nihonjins na primeira metade do século XX, sua dor, sua luta e suas dificuldades em se fixarem numa terra distante e culturalmente diversa, diferente de seu país tradicionalmente milenar. O conflito e a segregação dos imigrantes japoneses é um lado da história por vezes esquecido, poucos escritos denunciam a dificuldade de adaptação desse povo que aqui chegou, há uma memória coletiva baseada apenas rigor e dedicação nipônica e suas expressões artísticas e artesanais.
 O texto apresenta relatos pessoais do autor, que ouviu e presenciou a manutenção da cultura e costumes nipônicos, dentro de sua família, que veio para o Brasil na segunda década do século XX, a trama se desenvolve com a saga da família do patriarca Hideo Inabata, fiel súdito do imperador japonês e orgulhoso de sua nacionalidade, a se estabelecer no estado de São Paulo e conquistar a prosperidade e riqueza prometidas no Japão, para um dia retornar a terra do sol nascente. Durante o livro Inabata se depara com muitas dificuldades, a dura vida nos cafezais paulistas, a perda da primeira esposa e os conflitos com um dos filhos geram momentos de tensão e incertezas para ele.
A história narrada deixa claro como foi custoso para que os imigrantes japoneses se acostumassem com a vida agrícola a serviço do café, muitos deles treinados apenas no cultivo de hortifrúti e do arroz sentiram na pele o peso da enxada, Kimie, a primeira esposa de Hideo, sofria com o trabalho pesado, mulher delicada, gentil, que não se acostumara com o sol forte do campo e em seu primeiro inverno esperava ver a neve cobrir o café. Do trabalho no campo até a adaptação com o clima e a realidade cultural variada pelo contato com imigrantes de outras nacionalidades, o conflito e o choque cultural foram os principais agentes da adaptação dos japoneses no Brasil.
O texto ilustra também detalhes a tensão entre os japoneses e sua posição sobre a guerra, a proibição do governo Vargas de manifestação pública da cultura nipônica criou redutos de ódio e intolerância entre os próprios japoneses e em alguns brasileiros, o relato da prisão de Hideo, por ensinar japonês aos pequenos nihonjins mostra a criminalização da prática de um povo que sofreu com a aceitação de sua cultura em terras estrangeiras.
Representação social e identidade cultural
Para a tarefa de montar a problemática em torno da identidade cultural do japonês em solo brasileiro gostaremos de esclarecer o conceito de representação social, que serve como ferramenta de análise para nossa investigação. A representação é uma ação social que reúne diferentes elementos da realidade que lança luz à realidade empírica cognoscível a fim de dar significado a tudo o que existe, projetando o imaginário abstrato acerca do concreto, do exterior, em uma forma pela qual conhecemos algo e produzimos dado conhecimento.
Para Minayo as representações sociais, por mais que pareçam ser manipuladas por teóricos e estudiosos, são fundadas através das estruturas sociais e no cotidiano do pensamento popular que transita no interior da sociedade, na vida social e na convivência humana:
“(...) embora essas categorias apareçam elaboradas teoricamente por algum filósofo, elas são a mistura das ideias das elites, das grandes massas e também das filosofias correntes, e expressão das contradições vividas no plano das relações sociais de produção”. (MINAYO,1995, p. 109).
No contato com o outro os atores sociais estabelecem relações dialógicas onde buscam ser reconhecidos e reconhecem seus pares, em uma troca onde os papéis sociais em campo revelam o que eu penso ser e o que o outro pensa que eu sou. Tal movimento não faz circular a plena verdade, mas, um reposicionamento da presença do significado, elaborando uma representação do outro e sua singularidade.
As representações sociais repousam nas múltiplas identidades que são construídas por meio das diferenças que grupos apresentam em relação a outros, não há uma formulação concreta do termo, Stuart Hall considera que a identidade depende do choque cultural com o diferente para que possa ser construída como uma projeção do resultado das relações conflituosas, sendo assim, não há identidade sem conflito. (HALL, 2006).
A identidade se coloca como a representação daquilo que somos diante do outro, como a subjetivação é porta de entrada para a formulação racional sobre a realidade, a representação simbólica da aparência demarca nossas relações que inicialmente norteiam nosso contato com os indivíduos o produto da identidade é mutável, flexível, concebido em um processo coletivo, ininterrupto e suscetível as mudanças geográficas e temporais. (HALL, 2006).
Edward Said em seus estudos sobre o oriente demonstra como a representação elaborada pelo pensamento eurocêntrico criou uma imagem turva sobre a vida do oriental, o conceito de Orientalismo proposto pelo autor demonstra a forma ocidental de representar o outro como maneira de autoafirmação de sua cultura, em um jogo de hierarquia cultural. (SAID, 1990).
O orientalismo como forma de discurso se utilizou da criação de realidades através da representação do discurso hegemônico por meio da credibilidade das instituições de produção científica para vocalizar um ideal de superioridade europeu em relação ao resto do mundo.
A perspectiva essencialista do oriente, em uma forma própria de ser não europeia, conduz a representação do outro através de um viés arbitrário, revelado por generalizações superficiais e estereotipadas por meio do desenho de uma essência do árabe, que pode se tornar um modo de construção representativa projetado nas mais diferentes culturas, dando um prisma esotérico e dissimulado sobre a realidade do outro. (SAID, 1990).
A formulação de uma representação dominante alcança o olhar do dominado a ponto de que o próprio outro passe a se representar assimilando o modo dominante, como vemos os conflitos na obra de Nakasato onde por meio do contato com os brasileiros, os imigrantes japoneses se questionam sobre sua própria origem cultural.
 Identidade e conflito
No processo de instalação e adaptação dos imigrantes nipônicos nas cidades e cafezais brasileiros podemos notar vestígios do idioma japonês na linguagem falada, passando pelo modo com que se relacionavam com os brasileiros, os traços marcantes de uma cultura milenar que durante séculos permaneceu intocada era tão visível quanto os olhos puxados que traziam em seus rostos.
A fala carregada com a língua japonesa, tão distante da matriz latina que deu origem ao português era uma característica especial na comunicação dos imigrantes, seus diálogos dentro de casa eram grande parte na língua materna e posteriormente se tornaram nun dialeto que misturava pronomes de tratamento como “san” e “chan” para chamamentos afetivos entre os familiares, passagens trazidas no romance sem nenhuma forma de destaque gráfico, denotando um padrão comum ao aspecto híbrido da linguagem falada pelos recém chegados.
O orgulho patriótico da maioria dos japoneses gerou em suas relações com os brasileiros e os imigrantes europeus aqui instalados uma tensão criada pela dualidade dentro “uchi” e fora “soto”, que era caracterizada pela oposição entre “nihonjin” que era o japonês e o “gaijin” que se referia ao estrangeiro, no caso os brasileiros e todos que estão fora do círculo cultural nipônico.
Em vários trechos as relações uchi X soto são apresentadas, sendo a maior parte delas equivalente ao que se considera o grupo japonês e o grupo estrangeiro (neste último inseridos os brasileiros e os outros imigrantes convivendo no Brasil). Sem dúvida é muito marcante esta diferença entre os grupos e a autoafirmação da identidade cultural/nacional do protagonista, já que, mesmo sendo ele o estrangeiro em uma terra que não é a sua, ele considera que os brasileiros é que são os “de fora”. (SÁ, 2017, 142).
A fiel submissão ao imperador e aos costumes japoneses demonstram o espírito patriótico que é encarnado na figura de Hideo Inabata, que constantemente se envolve em contendas com seus semelhantes e com os brasileiros e imigrantes.
Um caso ilustrativo do patriotismo de Hideo tem como plano de fundo as dúvidas de Haruo em relação a sua verdadeira origem, seus colegas de classe o chamavam de japonês porém, a professora afirmava que o menino era brasileiro como todos pois não havia nascido no Japão como seus pais. Tal situação faz com que o patriarca vá ter um diálogo com a professora da escola brasileira “burajiru gakkõ”, onde ainda que furioso e certo que a fala da professora pudesse ser prejudicial na conservação das tradições, Hideo tem um comportamento de submissão diante da docente que é vista como grande autoridade na cultura japonesa.
Enquanto levantavam Satosan, Hideo continuou: tinha a certeza de que sua pátria era o Japão, de que devia fidelidade ao imperador, que era um ser superior e iluminado. Por isso, na estrada que o conduzia de volta à casa, impondo a si a negação da dúvida que Satosan depositara em seu pensamento, ratificou a ideia de cancelar a matrícula de Haruo no burajiru gakkō. (NAKASATO, 2011, p. 72-73).
Haruo era o filho que mais dava trabalho, era diferente, sentia que não era “nihonjin”, japonês, mas era “gaijin”, brasileiro, tivera vários atritos com seu pai e não se identificava com a cultura japonesa, mais tarde quando adulto, publicara um artigo sobre a derrota japonesa na segunda guerra e fora perseguido por radicais súditos do imperador, até ser morto.
Haruo é a expressão acabada do deslocamento criado frente ao choque cultural sofrido pelos japoneses ao se integrarem na sociedade brasileira, a identidade em crise assume elementos híbridos para justificar o pertencimento a uma nova categoria, centrada no tradicionalismo japonês e na natalidade brasileira, o diálogo com seu pai traduz o sentimento de Haruo:
“− Otōchan, a cara e o nome eu não posso mudar, mas isso não importa muito. Sensei do burajiru gakkō disse que somos todos iguais, filhos de Deus, não importa se os olhos são puxados ou não, se os cabelos são lisos ou enroladinhos, se o menino é preto ou japonês. O que importa é o que otōchan está dizendo: o coração. E eu sinto que meu coração é brasileiro”. (NAKASATO, 2011, p. 67).
A amizade de Kimie, primeira esposa de Hideo, com Maria, uma negra da fazenda, despertou a ira de Inabata que afirmava o preconceito racial trazido do Japão e reforçado pelos brasileiros, segundo ele essa gente era uma espécie inferior, quase animalesca, que não era bom se misturar com eles, reafirmando a representação estereotipada dos japoneses sobre os negros.
O contato das duas se dava longe do marido, que proibia as conversas com a negra por medo de que o convívio quebrasse a interseção entre o dentro e fora, kimie não gostava de contrariar o companheiro, mas também não via nada de mal em Maria, que era conhecida na fazenda por seus chás e rezas e até ajudou Kimie quando esteve doente. É nítida a preocupação de Hideo em manter segregados os espaços entre sua família e a vizinha negra, como recorda Sá (2017, p. 142) “Hideo admite oferecer presentes a Maria em agradecimento pelo auxílio prestado na doença de Kimie, mas não por gratidão e sim por obrigação – e para manter cada um em seu círculo, sem interseções”.
Considerações finais
A obra de Oscar Nakasato é um trabalho que a cada linha se compromete com a construção de uma narrativa que problematize fielmente a imigração e adaptação japonesa no Brasil, para tanto, a história é contada de modo que busca imergir o leitor na trajetória de Hideo Inabata, imigrante fiel ao imperador e devoto de suas tradições, as quais não mede esforços para preservar e transmitir a seus filhos. Através da contestação das formas de descrição histórica já consagradas Nakasato apresenta um modo de escrita plural, que remonta falas de variados personagens e propõe a reflexão sobre a essência do discurso histórico.
 O processo de deslocamento causado pela imigração corrobora para alterar as estruturas culturais e simbólicas daquele que sai de seu país, ainda que fechados em colônias com seus semelhantes o ator social sente o peso das estruturas que forçam o contato e aprendizado da cultura aonde está se inserindo.
Dentro das teorias sociais que buscam compreender a relação do homem social com a construção de seu eu coletivo a questão da identidade está no centro do debate, as tradicionais formas que direcionam a identidade estão sendo substituídas por outras, fragmentando o ser moderno em um processo que foge do padrão unificado de outrora. A consequência desse processo são sociedades cada vez mais contraditórias e difusas, com elementos conflitantes e multifacetados que se rearranjam em novas estruturas garantindo uma nova engenharia social e simbólica.
Ao olhar para o percurso de vários personagens do romance, sobretudo aqueles que demonstram experimentar uma crise de reconhecimento de si, é clara a imagem da fragmentação cultural que os coloca em uma posição marginalizada em uma identidade que não é nem japonesa nem brasileira, fruto de um hibridismo cultural que não possibilita conforto e aceitação plena em nenhum dos conjuntos simbólicos.
Referências
Wellington Lucas dos Santos, licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM), mestrando acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPG/UEM) pela mesma instituição.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro, DP&A, 2006.
MINAYO, M. C. de S. O conceito de Representações Sociais dentro da sociologia clássica. In: GUARESCHI, P.; JOVCHELOVITCH, S. (orgs.).   Textos em Representações Sociais. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 89-111.
NAKASATO, O. F. Nihonjin. São Paulo: Benvirá, 2011.
SÁ, Michele Eduarda Brasil de. Identidade e Cultura no Romance Nihonjin, de Oscar Nakasato.  Itinerários, Araraquara, n. 44, p. 139-148, jan./jun. 2017
SAID. Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente; traducão Tomás Rosa Bueno. - Sao Paulo: Companhia das Letras, 1990.


14 comentários:

  1. Olá, Wellington.

    Tenho duas dúvidas:

    - Queria saber se você consegue perceber, no livro, que mesmo os imigrantes japoneses e seus descendentes (nikkeis) tentam manter-se fielmentes a tradição da cultura japonesa e fechados na colônia, ainda há negociações com a cultura brasileira? Pois aqui no Brasil, me parece, que se forma uma "comunidade imaginada", com identidade e características diferentes do Japão e também diferentes do Brasil.

    - Outra pergunta, é se você nota esse conflito de gerações e se pretende aprofundar mais nessa questão? Eu estudo um romance também, mas é uma narrativa feminina, e é muito claro o conflito de gerações na comunidade nipônica, principalmente, com a segunda e terceira geração, porque eles tentam afirmar mais uma brasilidade, diferentemente de seus pais ou avós, que ainda são muito ligados a cultura japonesa e as tradições. Tenho uma indicação de leitura, não sei se você já leu o livro "Uma diáspora descontente" é do Jeffrey Lesser, ele aborda justamente essa questão dos nikkeis se reafirmarem brasileiros e não japoneses.

    Luana Martina Magalhães Ueno

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    1. Olá, Luana.


      Sobre as negociações culturais, a relação dentro versus fora esboça bem o conflito.


      É possível notar o apego de Hideo em seguir a cultura japonesa, várias passagens relatam sua crença no império japonês e o cuidado em transmitir aos seus familiares tal sentimento. Ainda que Hideo seja a personificação da fidelidade ao modo de vida japonês este ainda faz concessões ao conjunto brasileiro, como seu diálogo com a professora e a visita a sua vizinha Maria, a negra que ajudou na enfermidade de sua esposa.
      O ponto central está na quebra da dualidade dentro x Fora, quando os atores rompem a barreira e contatam o mundo externo a cultura japonesa vemos o marco do hibridismo cultural, suas relações demonstram elementos de ambas culturas, o dialeto português com traços japoneses para relatar sentimentos ou práticas é um exemplo. A interseção define bem o conjunto simbólico híbrido dos imigrantes japoneses, a fala de Haruo é um exemplo de que ainda que os traços físicos e a herança cultural dos pais seja japonesa, o contato com o exterior evoca uma crise identitária no indivíduo.


      Sobre os conflitos geracionais, pude perceber, ainda que não fosse meu foco de análise, no papel das mulheres.


      Kimie, a primeira esposa de Hideo exemplifica a submissão feminina na comunidade japonesa a busca em ser a provedora das tradições para seus filhos, Shizue já adota uma postura de conflito em relação a passividade das mulheres, muito pela influência de seu filho Haruo, e Sumie que mesmo sendo parte da cultura e de ter casado com Ossamu rompe a barreira do tradicional e abre mão da sua pertença cultural, seus filhos e família para morar com um brasileiro, anos depois ela retorna como banida por seus pais.


      Temo que se confirme a hipótese de que a natalidade possa ser um fator importante para a afirmação cultural pela influência diária da cultura brasileira sobre os mais novos, muitos não conheceram o Japão e só tem contato cultural através do círculo familiar, mas há de se investigar com exatidão.


      Obrigado por seus questionamentos e pela sugestão de literatura, espero ter contribuído, qualquer dúvida me contate via e-mail wellingtom.santos5@gmail.com

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  2. Wellington, parabéns pelo trabalho. O romance escolhido é muito interessante. Eu trabalho com imigração japonesa há algum tempo e me interessei bastante por ele. Gostaria que você comentasse a respeito do conflito sofrido pelo Hideo, que, apesar de discordar do ponto de vista da professora brasileira de seu filho, se coloca em uma posição submissa perante ela devido a sua própria cultura. Este episódio despertou muito a minha curiosidade. Outra coisa que gostaria que você pontuasse é a respeito do tipo de comparação que poderemos fazer sobre a “posição marginalizada” que os japoneses tinham no Brasil, com o fenômeno dos dekasegis: os brasileiros descendentes de japoneses que vão trabalhar no Japão.
    Ronaldo Sobreira de Lima Júnior

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    1. Olá Ronaldo, obrigado pelos comentários e questionamentos.


      Hideo é o personagem que está mais comprometido com as tradições japonesas, em toda sua atuação é possível vê-lo como um modelo de guardião do conjunto simbólico nipônico, a cultura japonesa sobretudo as relações hierárquicas reguladas pela autoridade é algo que pode ser assimilado no trecho de sua visita. Nota-se a relação conflituosa entre Hideo e Haruo no momento em que o filho expõe algumas provocações sofridas na escola por sua aparência, gerando no menino uma crise de identidade, em seguida o pai lhe aplica um castigo e decide ir falar com a professora.
      Em seu diálogo com a docente na escola, inicialmente Hideo foi firme e disse que sabia que pelos termos legais Haruo era um brasileiro nato mas que era criado como japonês, o pai se enche de argumentos como a prática da cultura e língua japonesa para atestar a identidade do filho, ao fim da prosa a professora afirma que Haruo era japonês e brasileiro, que no tempo certo iria discernir sobre quem realmente era.
      O encontro de Hideo com a professora é importante pois demonstra que a preocupação do pai em argumentar sobre a criação de seu filho e sua “dificuldade no convívio com os japoneses da colônia” (palavras de Hideo) é uma afirmação tácita de sua identidade híbrida, mesmo sendo fiel ao imperador e aos costumes nipônicos Hideo vê no encontro com o outro que ele é o “Gaijin” estrangeiro, algo que a relação imposta pela dualidade de “uchi” (dentro) x “soto” (fora) da cultura japonesa tenta inverter em todo o livro, colocando brasileiros como os de fora e japoneses como os de dentro.


      Sobre as relações entre a representação do imigrante japonês no romance e a vida dos dekasegis não posso afirmar com precisão pois não é minha área de pesquisa porém, me ocorre a hipótese de que a construção social que envolviam os colonos imigrantes nas fazendas de café era bem diferente da estrutura encontrada no Japão pelos imigrantes brasileiros, a sociedade brasileira foi forjada no multiculturalismo, já o Japão é fruto de uma cultura milenar que permaneceu fechada por um longo período.
      Acredito que não é possível afirmar se houve uma posição marginalizada dos japoneses em relação aos brasileiros, vivendo nas fazendas haviam grupos culturais distintos por conta das diferentes nacionalidades de imigrantes mas em relativa igual posição social e posto de trabalho, quando os japoneses vão para as cidades as relações começam a mudar, o livro narra nos capítulos seguintes fatos sobre a proibição de expressões culturais públicas pelo governo brasileiro não só para os japoneses mas, de todas as nacionalidades do Eixo durante a segunda guerra mundial, o que gerou tensão, situação que deve ser melhor apurada. Creio que a relação “uchi” (dentro) x “soto” (fora) seja mais presente no Japão, o que pode contribuir para uma exclusão inicial dos dekasegis de alguns aspectos culturais, mesmo que a característica física e os laços sanguíneos se aproximem dos japoneses a natalidade brasileira e seu peso na transmissão cultural fazem do imigrante um ator cultural híbrido, sem considerar ainda a representação do imigrante no ideário social japonês.


      Espero ter contribuído, qualquer dúvida me contate via e-mail wellingtom.santos5@gmail.com

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  3. Igor Trindade de Almeida7 de agosto de 2019 às 15:31

    Vemos que, como na citação de Stuart Hall, não há identidade sem conflito. Porém, no seu artigo, em partes como "Haruo é a expressão acabada (palavra esta que tomo grifo) do deslocamento criado frente ao choque cultural sofrido pelos japoneses...". E como também "A consequência desse processo são sociedades cada vez mais contraditórias e difusas, com elementos conflitantes e multifacetados...", vemos um tom negativo em tal conflito, e principalmente contrario a miscibilidade cultural?

    Igor Trindade de Almeida

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    1. olá Igor, obrigado pelos questionamentos.


      Sobre Haruo, a palavra “acabada” foi empregada no sentido de mais próximo do fim, na barreira do acabado, derivada do latim que denota significado de parte final, o personagem esboça a etapa final do processo de imersão cultural nipônico e brasileiro que resulta na figura híbrida, nem japonês nem brasileiro mas, um agente dotado de um arcabouço cultural próprio estabelecido pelo conflito.
      Analisando as relações culturais através do prisma metodológico proposto por Hall podemos considerar a construção identitária como um processo conflituoso, permeado por relações contraditórias, aí tomo emprestado a matriz marxista de contradição, onde o embate e sua superação são parte da essência dos fenômenos. Stuart Hall ao falar dos processos que assume a identidade cultural na conjuntura global aponta três caminhos: homogeneidade, resistência ou hibridismo cultural, que remete a uma paráfrase de tese, antítese e síntese.
      O hibridismo cultural em Nihonjin se apresenta no momento em que as relações culturais “uchi” (dentro) x “soto” (fora) não correspondem as teias sociais e se rompem pelo conflito, criando uma interseção entre o ser japonês e o ser brasileiro, em uma representação identitária fluida, onde a posição do indivíduo se encontra no vácuo entre tradicionalismo e o meio externo.
      Colocar em xeque a contradição dentro das construções de identidade cultural me parece ser uma atividade ingênua e incompatível com o pressuposto científico da investigação, não encontrei ainda nada que possa ser essencialmente cultural senão o próprio conflito visto que jamais poderemos afirmar categoricamente o que é específico de um conjunto simbólico, o que temos como objeto são representações, projeções da realidade cultural esboçadas por atores culturais em diferentes contextos sociais.


      Espero ter contribuído, qualquer dúvida me contate via e-mail wellingtom.santos5@gmail.com.

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  4. Conforme Kathryn Woodward, as identidades são construídas por meio da diferença, o outro é o que eu não sou e eu sou aquilo que o outro não é. Outro teórico relevante na questão cultural e identitária, que também aborda como Said o discurso colonial, é Homi Bahbha que ressalta o esteriótipo. É possível afirmar que as personagens de origem japonesa do romance constroem suas identidades pela diferença e que elas são esteriotipadas por personagens brasileiras?
    Márcia Rohr Welter

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    1. Olá Márcia, obrigado pela pergunta.


      Com relação a construção da identidade pela diferença, um aspecto que evidenciei no texto e nos questionamentos respondidos anteriormente trata da relação “uchi” (dentro) x “soto” (fora), pelo conflito de estar dentro do círculo cultural nipônico ou fora dele, para o caso dos brasileiros e imigrantes dos outros países, é definidor das relações sociais e da construção da representação japonesa sobre o ser japonês. Sair do eixo de dentro requer abrir mão da herança cultural tradicional e enveredar os caminhos em busca de uma representação distinta, porém, os brasileiros olham para os imigrantes como alguém de um conjunto simbólico, o que direciona os nipônicos ao espaço figural híbrido, onde são atores a margem do ideário japonês e brasileiro.


      Sobre a visão estereotipada há sim uma construção representativa antecipada sobre o outro em ambos os lados, o comportamento dos meninos na escola da fazenda frente Haruo vai nessa direção, o apelo rotulador para se referir ao sotaque, o apelido de japonês com tom pejorativo para se referir a aparência física são marcas profundas, indeléveis, podemos tomar como empréstimo o argumento de preconceito de marca elaborado por Oracy Nogueira para retratar as prenoções construídas sobre os negros no Brasil, tomadas as devidas proporções, é claro. Hideo em seus diálogos sobre a vizinha negra chamada Maria também tece comentários racistas e preconceituosos, com tom exotérico e eugenista, baseados no ideário estereotipado dos negros.


      Espero ter contribuído, qualquer dúvida me contate via e-mail wellingtom.santos5@gmail.com.

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  5. Boa Noite!
    A narrativa literária aqui analisada apresenta algo sobre diferentes identidades culturais japonesas, considerando os sujeitos mais ligados ao espaço rural em relação aos do espaço urbano?

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    1. Olá Fabiana, obrigado pela pergunta.


      Sobre a questão do romance fazer referências sobre diferentes identidades culturais japonesas não tive essa impressão lendo o texto, a preocupação do autor que fica clara em toda a obra, é narrar a trajetória de uma família japonesa tradicional e como seu patriarca, Hideo, conduz seus familiares, o escrito está centrado no choque cultural causado pelo deslocamento dos sujeitos frente uma cultura nova e desconhecida. O que está evidenciado é a passagem dos personagens por diferentes contextos e como estes alteram sua construção identitária, como a saída da família da fazenda de café para um sítio arrendado, a partida para a cidade de São Paulo, a entrada de Hideo na Shindo Renmei, uma organização nacionalista japonesa, a trajetória dos filhos na vida profissional e as relações de mercado matrimonial.


      Espero ter contribuído, qualquer dúvida me contate via e-mail wellingtom.santos5@gmail.com.

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