Elga Mota


A atualidade do Orientalismo como categoria de análise
Elga Mota Oliveira

Considerado um dos intelectuais palestinos de maior influência no mundo, Edward Said foi considerado referência na defesa de causas palestinas em território norte-americano. Seu ativismo social e político bem como experiência como imigrante nos EUA o influenciaram na autoria de livros sobre a temática oriental, mostrando sob sua perspectiva mecanismos de dominação hegemônica de países do leste sob o oeste. “O caráter universal de sua obra é observado na forma como abordou a história de povos colonizados - especialmente do Oriente Médio e da Ásia. Seu trabalho - principalmente o livro "Orientalismo", lançado em 1979 - relançou as bases para pesquisas em disciplinas como Estudos Pós-Coloniais e Teoria Crítica das Raças. (BUENO; NAPOLITANO, 2003).
Neste ensaio apresentamos como se fundamenta a categoria orientalismo, pensada por Edward Said e como esta visão de mundo produziu ao longos dos tempos formas de classificação que inviabilizaram e inviabilizam tradições culturais e históricas dos mundos árabe e muçulmano. Para esta reflexão, utilizaremos como base a obra Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente.
Na obra supracitada, o autor aponta os reflexos de sistemas de classificação no oriente e no ocidente. Para tanto, utiliza-se de categorias como hegemonia e poder e fundamenta-se teoricamente em autores como Michel Foucault e Antonio Gramsci. É importante salientar que como oriente o autor considera os termos oriente próximo, referindo-se ao oriente médio e extremo oriente quando faz menção ao continente asiático.
Para o autor, “o oriente é quase uma invenção europeia” ( SAID, 1990 p.13) e a questão central do orientalismo apresentada por ele é a visão hegemônica de maneira estereotipada que o ocidente tem sobre o oriente, resultado de um processo que expressa interesses, sobretudo econômicos, políticos e sociais. O autor problematiza e contribui para que questionemos o modo de enxergarmos, como ocidentais, o oriente e como esta imagem foi construída ao longo da história por França e Inglaterra e mais recentemente pelos Estados Unidos da América, ou seja, que questionemos as verdades que nos são apresentadas sobre o oriente pelo ocidente. 
O conceito de hegemonia apresentado em Gramsci e utilizado por Said embora este último não utilize o termo classe, trata-se da:
“... a hegemonia como capacidade de unificação através da ideologia e da conservação de um bloco social unido, mas não homogêneo... A classe é hegemônica dirigente e dominante ao criar um consenso, por manter sua articulação através da ação política, ideológica e cultural dentro das forças heterogêneas, que consegue impedir que as disputas entre tais forças explodissem e provoque assim uma crise na ideologia dominante. ” (BATALHA, 2017 p.182).
Segundo Batalha,
“Gramsci contribui em Said exatamente por sua noção conferir validade a práticas que a Europa e os Estados nacionais detinham para a afirmação do poder burocrático e da criação dos discursos universalistas que possuíam esse caráter hegemônico, não se restringindo ao marxismo. Afirmando que a hegemonia não é apenas política, mas também um fato cultural, moral, de concepção de mundo.” (BATALHA, 2017 p.182).
O orientalismo faz parte de um projeto de expansão territorial, econômico, político, social e de conquista e dominação de mentalidades e produção de ideologias. Desta forma, perpassa pela cultura, pela academia, pela língua, por concepções do que é considerado aceito ou não e por diversos espaços existentes nas sociedades. Said define da maneira a seguir: 
“Portanto, orientalismo não é um mero tema de estudos políticos ou campo refletivo passivamente pela cultura, pela erudição e pelas instituições; nem é uma ampla e difusa coleção de textos sobre o Oriente; nem é representativo ou expressivo de algum nefando complô imperialista “ocidental” para subjugar o mundo “oriental”. É antes uma distribuição de consciência geopolítica em termos estéticos eruditos, econômicos, sociológicos, históricos e filológicos; é uma elaboração não só de uma distinção geográfica básica (o mundo é feito de duas metades, o Ocidente e o Oriente), como também de toda uma série de "interesses" que, através de meios como a descoberta erudita, a reconstrução filológica, a análise psicológica e a descrição paisagística e sociológica, o orientalismo não apenas cria como mantém; ele é em vez de expressar, uma certa vontade ou intenção de entender, e em alguns casos controlar, manipular e até incorporar, aquilo que é um mundo manifestamente diferente (ou alternativo e novo) e acima de tudo, um discurso que não está de maneira alguma em relação direta, correspondente ao poder político em si mesmo, mas que antes é produzido e existe em um intercambio desigual com vários tipos de poder, moldado em certa medida pelo intercambio com o poder político (como uma ordem colonial ou imperial), com o poder intelectual (como as ciências reinantes da linguística comparada ou anatomia, ou qualquer urna das a modernas ciências ligadas decisão política), com o poder cultural (como as ortodoxias e cânones de gosto, textos e valores), com o poder moral (como as ideias sobre o que fazemos e o que "eles" não "nós" podem fazer ou entender como "nós" fazemos). Como efeito, o meu verdadeiro argumento é que o orientalismo é - e não apenas representa - uma considerável dimensão da moderna cultura político-intelectual, e como tal tem menos a ver com o Oriente que com o "nosso" mundo”. (SAID, 1990, p.24).
Conforme a citação acima, podemos considerar o orientalismo como um estilo de pensamento ou um sistema de conhecimento sobre o Oriente fruto da construção de um projeto hegemônico de mundo onde o ocidente se sobrepõe ao oriente e necessita da manutenção de tal modo de pensar e enxergar o mundo para fortalecer e permanecer em seu poderio, constituindo-se assim o oriente como “parte integrante da civilização e da cultura materiais da Europa”. (SAID, 1990 p. 14).
De acordo com o autor, seu início se deu ainda no império até a Segunda Grande guerra por França e Inglaterra principalmente as quais tiveram colônias durante muito tempo no oriente. As ciências sociais e humanas tiveram uma grande participação na construção deste imaginário ocidental acerca do oriente e a expedição napoleônica no Egito foi um dos marcos que respaldou a visão orientalista de forma científica na medida que nela estavam presentes também biólogos, historiadores e profissionais de outras áreas que fizeram produções científicas com a perspectiva de um olhar europeu conquistador e determinista  sobre um Egito que carecia de um olhar, de um estudo europeu e que seria uma região que necessitaria de ser tratada, haja vista a construção de um oriente distanciado da civilização ocidental.
É importante salientar o papel dos intelectuais como porta- vozes desta hegemonia e que tais produções científicas foram feitas para a Europa. “...depois da expedição egípcia de Napoleão, a Europa ficou conhecendo o oriente mais cientificamente para nele viver com mais autoridade e disciplina como nunca antes ( SAID, 1990 p.33).
De acordo com Batalha ( 2017, p. 194), “Foram os textos que tornaram esse Oriente possível. O Oriente presente nas obras era silencioso, “disponível” para a Europa para a realização de projetos que implicavam os habitantes nativos.” E ainda, “ Uma hegemonia só pode se construir quando se tem o que Gramsci chama de quadro do aparato hegemônico. Os intelectuais são os indivíduos que compõem estes quadros da classe econômica e politicamente dominante, os funcionários da hegemonia. Eles que elaboram a hegemonia. (BATALHA, 2017 p.183).
Mais recentemente, por meio do orientalismo norte-americano, pós Segunda Guerra e principalmente pós o atentado às torres gêmeas acrescentou-se e intensificou-se o estereotipo de inimigos, de terroristas e perigosos aos povos do Oriente Médio e muçulmanos como um todo, apresentando-se assim um discurso em prol de uma dominação semelhante à Europeia, embora se apresente com conceitos universalistas e ideias liberais, como analisa Batalha (2017) e Said, como descrito na citação a seguir:
“A minha ideia é que o interesse europeu e depois americano, pelo Oriente, era político de acordo com alguns de seus aspectos históricos ...mas que foi a cultura que criou este interesse, que agiu dinamicamente em conjunto com as indisfarçadas fundamentações políticas, econômicas e militares para fazer do Oriente o lugar variado e complicado que ele obviamente era no campo que eu chamo de orientalismo”. (SAID, 1990 p. 23).
A categoria pensada por Said esteve e está presente desde o século XVIII nas artes por meio de pinturas, esculturas, produções cinematográficas, músicas, novelas, na literatura, ora apresentando o oriente como um local de mistérios e monstros ou demonizando o Islã, ora propagando estereótipos da mulher oriental como sensual, fonte de prazer e de submissão à figura masculina.
“An Oriental Beauty”, pintura orientalista do espanhol Falero Luis Riccardo (1851-1896). Disponível em https://br.pinterest.com/pin/557250153866693033/

Acerca deste último Martins (2013) aponta que
“Os Estudos sobre a construção do Orientalismo demonstram forte influência na construção do imaginário utópico relacionado à mulher do mundo árabe. Conforme estudamos essas mulheres, percebemos que a imagem “verdadeira” dessas mulheres não se resume em um único tem, elas possuem aspectos de vida e costumes diferentes em cada fase da história e que na realidade não coincide com as interpretações dadas às mesmas na atualidade”. 2013 p. 10 .   
Embora iniciado antes da Segunda Guerra Mundial, o pensamento orientalista pode ser encontrado nos dias atuais em meios de comunicação, na literatura, artes, cultura e diversos outros campos que ainda criam uma imagem utópica e generalizada do mundo árabe.
Referências
Elga Mota Oliveira
Assistente Social, especialista em Educação, Pobreza e Desigualdade Social e Graduanda em Estudos Africanos e Afro-brasileiros na Universidade Federal do Maranhão - UFMA
BUENO, André. NAPOLITANO, Giuliana. Herança de Edward Said: mito do 'Oriente' é criação ocidental. http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=568 < acesso em: 03 de julho de 2019>.
BATALHA, Ettore Schimid. O orientalismo, ou a afirmação do discurso hegemônico do ocidente, Revista Argumentos, Departamento de Política e Ciências Sociais, Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES, Montes Claros/MG, v.14, n.2, p.177-198, jul/dez-2017.
MARTINS, Juliana Maria. Do Orientalismo a Construção de uma Imagem, Mulheres do Mundo Árabe. XXVII Simpósio Nacional de História: conhecimento histórico e diálogo social. Natal- RN, 2013.
SAID. Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente / Edward W. Said; tradução Tomás Rosa Bueno. - São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

16 comentários:

  1. Parabéns pelo excelente texto. O oriente é uma invenção europeia, mas qual a relevância da categoria orientalismo diante da alta especialização das disciplinas acadêmicas sobre Ásia conquistada nos dias de hoje? Basta dar uma olhada no site da EFEO pra entender o nivel de especialização atual...

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    1. Destacando que a EFEO trata-se de uma escola francesa considerada referência e que academicamente para que os estudos sobre Asia, India e Japão ganhem maior respaldo e notoriedade no mundo acadêmico há a necessidade de se respaldarem na escola europeia, considero como relevante e atual a categoria orientalismo enquanto representação e discurso.
      Um outro aspecto da relevância do orientalismo na atualidade é que esta categoria nos incita a questionar e repensar as representações do chamado oriente, seja considerado de forma genérica ou específica. De como nos é apresentado, de quem é a fala, por exemplo.

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    2. Bony Schachter,muito obrigada pelas palavras! Creio ser necessário compreender as condições históricas/epistemológicas que contribuíram para a formulação do conceito e inclusive sua atualidade reside em um estudo mais contextualizado do conceito. A relevância do orientalismo na atualidade é que esta categoria nos incita a questionar e repensar as representações do chamado oriente, seja considerado de forma genérica ou específica. Além disso, para que os estudos sobre Ásia adquiram maior respaldo e notoriedade no mundo acadêmico há a necessidade de se respaldarem em estudos mais amplos, transnacionais, e que levem em consideração conceitos como representação e discurso.

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  2. Texto excelente!
    Elga, na sua visão o conceito de Orientalismo pode servir de categoria explicativa, para não apenas tomadas de decisão de grandes potências mundiais, mas também para "lideranças" regionais tal como o Brasil na América do Sul? Tendo em vista, as sinalizações do nosso atual Ministro das Relações exteriores.

    Gustavo de Souza Gomes

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    1. Gustavo,no meu entendimento, o termo orientalismo pode ser utilizado quando se trata de distinção ontológica e epistemológica referentes a norte e sul. O que não é o caso da relação Brasil com outros países da América Latina, porém a categoria orientalismo engloba o controle de ideologias do que é considerado oriente ou norte sobre o ocidente. Neste sentido, características de tomadas de decisão do Brasil em relação a países do considerado norte, demonstrando subalternidade de nosso país vejo como resquícios do processo de dominação de mentalidades da Europa e mais recentemente pós Guerra – Fria dos EUA sob o Brasil.

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  3. Elga, parabéns pelo texto.
    Como um leitor de Said e dos seus críticos mais recentes, percebo que não apenas a noção de "oriente" é uma "invenção", como também a ideia de "ocidente" também é uma invenção, como, por exemplo, o próprio Said lembra, e, mais tarde, outros autores defenderam ao falar de "ocidentalismo". O suposto "ocidente" é na verdade uma diversidade de povos e países, e não há nenhum consenso sobre a definição desse termo.
    PERGUNTA: Não seria melhor abandonar os conceitos de "oriente" e "ocidente", e falar mais diretamente de locais (Ásia, China, Tóquio, etc.) e culturas (libanesa, coreana, islâmicos, budistas etc.) em trabalhos científicos?

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    1. Olá, Matheus!Muito obrigada por sua contribuição! É importante eurge que a academia considere cada vez mais as especificidades dos territórios sob uma perspectiva desmistificada, ação que contribui para o combate ao orientalismo. Porém a meu ver, o abandono significaria deixar totalmente de se pensar sobre esta categoria. Categoria a qual foi e é importante para o entendimento do processo de colonização territorial, econômica, política e ideológica principalmente europeia sob outros povos. Tal processo tem consequências até os dias atuais, desde a macroeconomia até o pensamento comum, que se mostra fora da academia.

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  4. Olá, Elga. Parabéns pelo texto!

    Você pode aprofundar a questão de como os países dominantes do eixo ocidental (EUA, Inglaterra, França) orientalizam os povos considerados diferentes nos dias atuais; e para qual finalidade?

    Lucas Pereira Arruda

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  5. Prezada Elga Mota, gostaria de parabenizá-la pelo texto. Uma questão que não me sai da cabeça é a seguinte: haveria, em sua opinião, algum horizonte possível para enxergarmos, no sentido contrário, maneiras como essas matrizes culturais asiáticas, à maneira pela qual o colega Matheus Costa citou acima [Japão, Índia, China, Rússia, Mongólia, Tailândia, Indonésia, Irã, Hinduísmo(s), Daoísmo(s), Budismo(s), Mazdeísmo(s), Sikhismo(s), Xintoísmo(s), Jainismo(s), Islamismo(s), etc...], direcionam seus olhares com seus paradigmas culturais para o(s) Ocidente(s) (algo como um “Orientalismo às avessas”)???? Em outras palavras, para você, o(s) Oriente(s) também não comportariam suas respectivas visões (problemáticas) em termos estéticos eruditos, econômicos, sociológicos, históricos e filológicos sobre realidades ocidentais...????

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    1. Muito interessante seu questionamento, Matheus! A estereotipação não é algo somente do chamado ocidente sobre o oriente, um exemplo é na obra Persepolis, de uma autora iraniana onde podemos perceber que a personagem principal faz parte de um grupo social considerado ocidentalizado de um modo estereotipado para os padrões iranianos, nesta obra podemos perceber também influências do oriente sobre os não ocidentais, uma das características do que é denominada a categoria ocidentalismo.
      Não vejo horizonte possível para algo que possamos compreender como Orientalismo às avessas, haja vista que a categoria em questão engloba não só a estereotipação, mas esta como parte de um projeto de dominação maior global que compreende expressões político-sociais e culturais. Embora no cenário mundial a China e a Coréia venham cada vez ganhando mais destaque, o budismo e o islamismo tenham adeptos em vários países, não vejo como possível cenário de uma dominação global contemplado as expressões citadas.

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    2. Prezada Elga Mota, agradeço demais pela resposta. Com certeza é uma conversa com desdobramentos quase infinitos em suas dimensões teóricas e metodológicas... mais uma vez, parabéns pela Comunicação... e parabéns para todos nós pelo 3º Simpósio Eletrônico de História Oriental...!!!!

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Olá Olga,
    Obrigada por compartilhar suas reflexões.
    Ao ler o texto uma questão ocorreu-me que se refere a importância da academia, mais precisamente, os cursos de formação de professores na propagação de uma ideia errônea ou superficial sobre o assunto?
    Cristina Ennes da Silva

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    1. Olá, Cristina!Muito pertinente seu questionamento no contexto atual considerando as mudanças em relação a política educacional brasileira e o currículo.
      Nossa matriz curricular é eurocêntrica em todos os níveis a nível nacional. Em se tratando de cursos de licenciatura, raros os casos que fogem a esta regra. Sendo assim, de forma mais genérica a academia acaba por favorecer a propagação e permanência do pensamento eurocêntrico e orientalista haja vista que não são todos os cursos que questionam tal matriz. Por esta razão, simpósios como este e trabalhos que tratem de um outro olhar diferente do eurocêntrico são tão importantes e devem ser, a meu ver, cada vez mais estimulados.

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  8. Excelente texto Elga, bem ilustrado. Quando afirmou que: "As ciências sociais e humanas tiveram uma grande participação na construção deste imaginário ocidental acerca do oriente [...]", logo me remeteu ao papel do positivismo na construção de uma perspectiva retilínea e progressiva Historia, vista pelo ponto de vista ocidental. Com isto, eu lhe pergunto, haveria alguma relação entre esta perspectiva positivista de mundo com o orientalismo?

    Gustavo Afonso Bennato Teodosio

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